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segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Voando - Vânia Moreira Diniz

Voando
Vânia Moreira Diniz
Escritora, poeta, humanista


Voei hoje em direção a um lugar especial, longe do barulho, das buzinas dos carros e da efervescência que lidera os grandes centros. Imaginei que só o tumulto e o movimento me deixassem à vontade, mas acordei com a sensação de que precisava me isolar para compreender o que se passava à minha volta.
Não importava que fosse domingo, o sol brilhasse luminoso, o tempo estivesse à minha disposição para usufruí-lo intensamente e a vida atendesse com suavidade os meus desejos.
Não interessava que o mundo se apresentasse atraente, o horizonte sem fim, as cores reproduzissem a beleza seleta e maravilhosa que meus olhos sempre buscavam e que já encontrasse alguma esperança no porvir.
Não me preocupava com a matéria, as ruas fascinantes, o encontro das pessoas em cada canto, a ternura de olhos a fitarem o infinito ou a certeza que poderia ser feliz eternamente.
Não me incomodava com retrocesso do egoísmo, a presença da generosidade, as juras transbordantes de carinho, a ansiedade que os dias traziam em suas horas arrastadas ou a certeza de sensações enlouquecidas.
Precisava volitar em outras paragens com leveza de quem possui asas, intercalar os espaços e ultrapassar o vento uivante e ligeiro. Passar bem acima do mar infinitamente belo senti-lo como o aliado que me conduziria acompanhando-me o vôo ilimitado.
Alcançar as nuvens, enroscando-me em sua claridade, seduzida pelo prateado ofuscante, alucinada pelo espaço tentador. E prosseguir meu passeio, bebendo em fontes que certamente mitigariam minha sede, parando às sombras das árvores, entendendo a voz enérgica da natureza e encontrando-me com o horizonte que refletiria outro horizonte inatingível.
E na sequência de meu caminho chegar finalmente às estrelas luminosas, mergulhar no azul profundo do céu a refletir a terra linda e impossível de alcançar.
Queria encontrar-me com meu espírito inaccessível esquecendo dos deveres, olvidando compromissos e esticando-me nos campos desse espaço que me acolhe em momento de abstração e recolhimento. Aprofundar-me nos meus próprios pensamentos e reminiscências.
Preciso voar com as asas ondulando em movimentos rápidos e graciosos, recebendo emanações do espírito, recolhendo sensações fascinantes que me farão esquecer vivências pueris e alternar vibrante entre a vida terrestre e a luz sinuosa das estrelas.
E então sentir-me plena e realizada, palpitante em minha poesia, vagueando entre o espírito sonhador e a realidade objetiva e árida.

Deitada sob a limpidez de um ponto ilimitado eu me curvo diante da beleza e do deslumbre de cada ponto da natureza e sinto-me privilegiada e agradecida.

Antologia TranSPassar - Rubens Jardim

BUSTO DE ÁLVARES DE AZEVEDO  
                                 (no Largo São Francisco)
Antologia TansSPassar - SESI-SP editora
Quieto, no meio da praça,
O poeta virou monumento.
Nenhuma palavra sai de
Sua boca de bronze para
Falar aos homens de agora.

Mas eu roubo seus poemas
e toco a sua lira dos 20 anos:

Se eu morresse amanhã...

A CIDADE DE PALAVRAS
Não conheci o caminho das especiarias, 
nem as sedas, nem as escravas.
Mas o êxtase já passou perto de mim 
e tão devagar 
como o bonde nos trilhos
do poema. 
E nessa cidade de palavras 
--e vertigens, 
todos os abismos eram navegáveis.
Barquinhos de papel conduziam 
infantes, infantas 
e desígnios insondáveis 
pelas sarjetas.

As ruas tinham letras, 
maiúsculas e minúsculas,
e eram indecifráveis seus nomes:  

Itambé, 
Cristiano Viana, 
João Moura, 

e ainda assim iluminavam 
minha infância 
--como cartilha 
ou catecismo.
Rubens Jardim

Aprendizagem do mundo.

Era isso então a língua e a linguagem: 
o sol entrando no céu da palavra. 

E eu soletrando estas cinzas 
queimando meu corpo

completamente em chamas.


Rubens Jardim
Jornalista e poeta

Casa assombrada de memórias CRISTIANE KRUMENAUER


Casa assombrada de memórias

   No quarto dela, havia um guarda-roupas muito antigo. Era escuro, gigantesco e assustador. Aninha jamais punha suas roupas nele. Temia que fosse devorada pelo móvel. Então, simplesmente delegava a tarefa à avó. A idosa esboçava um sorriso chupado quando via a bagunça no quarto e compreendia o temor de Aninha, tomando para si a responsabilidade de guardar tudo. 

   À noite, quando Aninha ia para o quarto e se deitava na cama, ao lado do roupeiro maligno, sua imaginação disparava e ela temia que o móvel fosse ganhar vida. Era difícil viver na casa da avó depois da morte do pai e da mãe. Aquele lugar pertencia a uma outra história; não a dela. E o roupeiro era assombrador; assim como o quarto, a cozinha e todo o resto, mobiliado com móveis carregados de vidas passadas – velhos e sombrios, como se carregassem pesadelos de outras gerações. A sensação não podia ser diferente: até as paredes eram horripilantes, ornamentadas com retratos de pessoas já mortas. Todas, sem exceção, haviam partido para o além, mas continuavam sorrindo maquinalmente, como se, antes de partirem, tivessem que registrar que a vida foi boa, porém, a morte existia.

   Aninha chorava às escondidas. A avó e sua idade avançada representavam mais um fim à espreita. O espírito débil e a imaginação célere atuavam em quem a menina viria a ser. 

   Um dia, decidiu fugir daquele lugar. Aninha precisava de paz, de sossego. Acabaria enlouquecendo naquela casa, vivendo entre os mortos e dormindo diante daquele roupeiro. Ela desapareceu no ano de 2017, para nunca mais voltar. 

   Lá fora, acabou descobrindo que o perigo real estava nos vivos. 



Sobre a autora:

CRISTIANE KRUMENAUER é autora de Atrás do Crime; Chamas da Noite; Memória, Imaginação e Narração; e da série de suspense Contos da Namíbia


domingo, 29 de janeiro de 2017

Atrasildo Rô Mierling

Atrasildo

Rô Mierling*

Rô Mierling
Chego ai as nove em ponto! — afirma meu convidado para o jantar.
O meu relógio marca nove horas, nove e quinze, nove e meia e nada!
Eu ligo e digo:
— Onde você está?
E ele diz que já está saindo de casa. Ele mora a uns 10 minutos da minha casa.
Dá nove e quarenta e nada, nove e cinquenta e nada.
 Sei que ele vai vir, mas só Deus sabe que horas ele vai chegar. Ele sempre vem, mas nunca na hora em que ele diz que vai chegar.
Quem nunca passou por essa cena? Acho que todos que já tiveram que esperar por alguém em algum dia.
Eu te pergunto então:
— Porque não temos nós o costume gentil, educado e respeitoso de chegar na hora em que dizemos que vamos chegar?
Simples: porque nem todos nós temos palavra. É uma simples questão de ter ou não palavra, salvo pessoas como médicos, padres e pastores e outros que estão submissos a eventualidades inadiáveis, 90% de nós não sabem que chegar atrasado é desrespeitar a palavra dada. Uma questão de ter ou não compromisso com quem está te esperando.
Imaginem a cena: seu horário de entrevista naquela empresa que você tanto sonha em trabalhar é as 17:00. Você chega as 17:40? Não, nunca. Você tem uma conta para pagar e o banco fecha as 16:00. Você chega as 16:30?  Nunca.
Por quê? Porque você sabe que não terá um minuto de tolerância, é na hora certo e pronto. Porque então eu ou você somos menos importantes e devemos tolerar atrasos sem explicações ou considerações por parte de nossos amigos e convidados em noites como essa do meu jantar?
É costume a noiva se atrasar – diz o ditado.
Eu digo: que costume mais sem consideração deixar convidados esperando sem ter a certeza de quando ou até, nos dias de hoje, se a noiva vai chegar.
Voltando ao meu jantar e meu amigo atrasildo. Eu esperando o tal amigo para jantar as nove, faltando 10 minutos para o horário marcado, verifico o forno, está pronto o prato que demorei horas para fazer. Desligo o forno e espero. Ele só chega dez e quinze da noite. Uma hora e quinze minutos de atraso e chega sorrindo sem desculpas.
E quando vou pegar o tal prato no forno percebo que está frio, murcho e ressecado e sou obrigada a sugerir pizza. Nesse tão simples ocorrido destaca-se a importância indireta de ser pontual mesmo em compromissos informais.

Sabe aqueles compromissos com seus amigos que você sempre marca? Que tal chegar na hora da próxima vez
“Pontualidade é a arte de não desperdiçar o tempo alheio.”

Autor desconhecido


*Editora e escritora

CARTAS À KAROLINY Lindoberto Ribeiro

O romance CARTAS À KAROLINY, do amigo Raick Tavares, nos remete a uma leitura agradável e ao mesmo tempo instigante, que prende o leitor desde as primeiras linhas até o seu final inusitado.

A visita diária de Edgar ao túmulo de sua amada, para ler poemas de Camões, uma promessa feita a Karoliny, quando ainda viva. O relato de Edgar e sua história romântica para um desconhecido, nos leva a perceber o quanto o amor entre dois jovens, pode ser eterno, mesmo passados vários anos.
E depois de muitos percalços que Edgar e Karoliny enfrentaram, Raick Tavares faz com que o final deste belo romance, leve o leitor a uma conclusão de que na vida as pessoas que cruzam a nossa caminhada têm um propósito divino e misterioso, umas para o bem outras para o pior dos nossos pesadelos.


Lindoberto Ribeiro

Lindoberto Ribeiro
Escritor, autor de Menino de Deus 

- Editora Ler - 2017 - Brasília.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Menino de Deus - Daniel Barros

“Se você se aborrece escrevendo, o leitor se aborrece lendo”
Gabriel García Márquez


“Se você se aborrece escrevendo, o leitor se aborrece lendo”
Gabriel García Márquez


Ao escrever Menino de Deus, Lindoberto Ribeiro o fez com deleite. Capítulos curtos e enxutos nos proporcionam grande prazer a cada página, além de nos levar ao clássico do gênero. Encontramos no arcabouço narrativo de Menino de Deus a presença do crime, da investigação e do malfeito, que são a base do gênero policial, sem perder o foco na elucidação do crime, tornando o delito algo não compensatório.  Isto é o que define o clássico do gênero policial.

S. S. Van Dine nos propõe 20 regras para se escrever um bom romance policial. Ribeiro nos brinda, em seu romance, com algumas delas:

O leitor deve ter oportunidade igual, comparada à do detetive, de solucionar o mistério. As pistas devem ser claramente descritas e enunciadas; nenhum truque ou tapeação proposital deve ser utilizado pelo autor, senão os que tenham sido legitimamente empregados pelo criminoso, contra o detetive; o culpado deve ser encontrado mediante deduções lógicas e não por acidente, coincidência ou confissões, à qual não tenha sido levado forçosamente.

Entretanto, Ribeiro diverge de algumas, como a que diz: “É preciso que haja apenas um detetive”, regra de que também discordo, pois Nestor Garcia e Branco Júnior, tais quais Watson e Holmes, Hastings e Poirot, entre outros, se completam e dão maior dinamismo à trama. Em Menino de Deus, Nestor e Branco, os detetives particulares, contam com uma equipe de auxiliares especialistas e ainda com uma rede de informantes e colaboradores dentro dos órgãos de segurança estatal.

Em Menino de Deus, a agência de Nestor e Branco, situada na cidade do Rio de Janeiro, é contratada por um milionário americano para descobrir o paradeiro de seu filho James e sua ex-esposa Ketlen que, após se converter a uma seita religiosa, se divorcia de Mr. Jhonson, o milionário, e passa a morar com o filho em uma das colônias da seita, ainda nos Estados Unidos. Entretanto, depois de desigual luta nos tribunais norte-americanos, Ketlen perde a guarda do filho para Mr. Jhonson e foge de forma misteriosa para o Brasil, via Uruguai. Após aceitarem o caso, Nestor e Branco passam a se sentir pressionados, pois pulam dos casos corriqueiros de traições extra-conjungais para um de dimensões internacionais. Para aumentar o drama, logo depois de assumirem o trabalho, passam a ser seguidos por um Opala Comodoro de cor preta, fato que deixa os detetives apreensivos.

A trama narrada assume proporções nunca imaginadas pelos detetives, com o envolvimento da Polícia Estadual carioca, Polícia Federal, FBI e até mesmo a CIA, e faz com que os detetives Nestor e Branco, e seus auxiliares, usem de todos os escassos recursos, aliados a perspicácia original do brasileiro, para solucionar o mistério do Menino de Deus.

Uma novela policial, que, com certeza, não aborrecerá o leitor.
Boa leitura.


Daniel Barros

https://www.facebook.com/dh.barros

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Circunvolucionando - Daniel Barros


Todos os bons livros se parecem: são mais reais do que se tivessem acontecido de verdade.
Ernest Hemingway

Foto: Daniel Barros
Circunvolucionando (edição do autor – 1ª edição 2014) nos apresenta Paulo Tadeu Poli.  Nascido em Cornélio Procópio, Paraná. Percorreu o mundo passando pela longínqua região do Norte do Brasil, radicou-se em Martinhos, litoral do Paraná.  Talvez, eu não possa afirmar com certeza, mas por influência de seu pai, um desbravador de terras em Cornélio Procópio e Campos Mourão, também no Paraná, tornando-se aviador e político, eleito deputado por três mandatos. A influência do Pai, levou o autor a se embrear num mundo de aventuras em regiões por ele desconhecidas como fez outrora seu genitor, e lá se tornar piloto de garimpo. Uma profissão inusitada para um Ginecologista obstetra.
Entretanto, essa experiência, levou Paulo a escrever esta bela estória. Que me deixou impressionado com a qualidade de sua obra. Paulo escreve com um profundo conhecimento dos temas abordados, sem se tornar piegas no exagero. Além de nos presentear com um vocabulário rico e prazerosa, característica que falta nos pseudoescritores que abundam no modismo dos romances “ROT” ou místicos da atualidade, pura literatura barata e comercial. Não, Paulo Tadeu Poli escreve com esmero e arte de um genuíno escritor.
Confesso-lhes que me surpreendi, já nas primeiras páginas, com o assassinato do avarento advogado doutor Ortellado, e temi que o autor não pudesse nos prender a atenção até o final. Lembrei-me, evidentemente, do clássico: CRÔNICAS DE UMA MORTE ANUNCIADA, do mestre Gabriel Garcia Marques. Onde o enredo principia pelo final, e, portanto, requer do escritor uma fabulosa habilidade em manter o ledor ainda interessado no desfecho final, ou melhor, inicial.
Paulo Tadeu Poli - Escritor
 Poli narra, na primeira pessoa, as memórias do velho Luigi, piloto da Regia Aeronáutica Italiana, nos tempos de Mussolini. Luigi compõe um esquadrão de caças incumbidos de bombardear a Espanha, em plena guerra civil, em auxílio ao fascista Francisco Franco. A mando de Hitler, Göring aproveita os bombardeios para provar a eficiências de seus aviões, assassinando milhares de espanhóis. Sim caro leitor, Luigi deu sua contribuição para que Pablo Picasso criasse sua obra prima: Guernica. É nesta viagem que nos leva o autor, desde a Espanha massacrada, a Europa à beira da Segunda Grande Guerra Mundial, passando por São Paulo, depois que o nosso anti-herói foge com espólios roubados e assassinato cometido, até navegar pelas águas claras do rio Tapajós e sobrevoar a imensidão dos céus do Brasil.
Digo-lhe; poderá o leitor médio, se perder no emaranhado da trama, se não se agarrar ao fio de Ariadne tecido pelo autor, se perderá nesse dédalo criado com mestria por Paulo Tadeu Poli.


Daniel Barros






À QUEIMA-ROUPA — O caso Pimenta - Daniel Barros

À QUEIMA-ROUPA — O caso Pimenta Neves

Fico impressionado, e me dá muito prazer quando me deparo com autores que nos transportam para dentro do ambiente e das paisagens. Assim faz Vicente Vilardaga logo no início do seu livro À queima-roupa. “Era um dia de domingo de agosto do ano de 2000. O céu azul se escancarava quase sem nuvens e amanhecia com um delicioso ar fresco...”.  Suas descrições nos levam para dentro do Haras Setti naquele dia fatídico, onde Sandra Gomide foi covardemente assassinada. Tais traços me lembram de outros escritores de quem gosto muito, como Bernardo Guimarães, Ernest Hemingway, entre outros.
Deixando de lado o prazer com as descrições, Vicente nos brinda com uma espetacular retrospectiva do momento econômico vivido no Brasil na segunda metade dos anos 1990. O início do Plano Real, as privatizações realizadas durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a crise das grandes companhias aéreas e seus impactos na sociedade.
Outro aspecto notável desse livro é o conhecimento do autor dos bastidores de redações de jornais como Estadão e, sobretudo, Gazeta Mercantil (cabe ressaltar também como é ético o autor ao contar a história). Com ênfase no período em que Pimenta Neves foi editor-chefe na Gazeta Mercantil e diretor de redação do Estadão, e de como comandava as redações com arrogância, prepotência, autoritarismo e nepotismo. E como ele usou do poder e do cargo para conquistar a jovem jornalista Sandra Gomide, 30 anos mais nova que ele.
Daniel Barros e Vicente Vilardaga, 32ª Feira do livro de Brasília
O livro nos mostra, também, quanto são poderosos os que comandam a grande impressa nacional. E Pimenta Neves, ciente desse poder, se mostra o monstro que realmente é, diferente da imagem de homem culto e equilibrado, como era visto. Vicente Vilardaga de forma corajosa e muito profissionalismo nos revela os bastidores desta intrigante história, onde o protagonista, Pimenta Neves, talvez tenha comungado com a ideia de Raskólhnikov, personagem de Dotoiévski, de que os homens “superiores” deveriam tudo poder. Depois do fim do namoro, ele persegue Sandra de todas as formas, até assassiná-la.
À queima-roupa é um livro que vale uma boa leitura e um lugar de destaque em nossa estante.


*Daniel Barros, 45, escritor e fotógrafo alagoano residente em Brasília.

No meio do caminho de Eugênio Giovenardi - Daniel Barros

No meio do caminho de Eugênio Giovenardi


Daniel Barros
Eugênio Giovenardi
Quando soube que o escritor Eugênio Giovenardi ia lançar uma biografia, fiquei muito animado e me preparei para a leitura. Sem perda de tempo, queria me deleitar com a nova obra do nobre escritor, que, dono de uma inteligência privilegiada, sabe transferir para os livros sua excepcional capacidade de observação. Após viajar pelo sertão nordestino com a triste saga de Heliodara (2010) e pelo belo convívio com. As árvores falam (2012)esperei encontrar em No meio do caminho (editora Movimento, 2014) a tradicional história de um homem, as brincadeiras de criança, o convívio familiar, as inquietudes da adolescência; enfim, a tradicional biografia. Mas, para a minha agradável surpresa, encontrei muito mais nas 176 páginas deste intrigante volume.
O que pude perceber foi uma relação íntima do autor de Silêncio (2011), com os dogmas e a cultura da igreja católica, que lhe foram incutidos desde o nascimento. Descendendo de família italiana — como se percebe pelo sobrenome Giovanardi, que foi aportuguesado para Giovenardi —, o berço da poderosa Igreja Católica, o menino vê aumentada ainda mais a influência da religião sobre a família. Com a mestria que lhe é peculiar, Eugênio faz um paralelo entre sua vida e a igreja e a rotina da igreja e a vida. Depara-se com imprecisões que não lhe são esclarecidas, apenas colocadas como dogmas que não devem ser questionados, sob pena de estar cometendo grave pecado, pois, mesmo não expondo ou declarando, tudo pode ser visto e ouvido; portanto, passível de castigo. A luta interna para livrar sua mente dessas amarras, é deveras dolorosa; a dor que parece transpassá-lo nos atinge em cheio, como leitores. Sem dúvida, uma leitura visceral, sobretudo para mim que, também, tenho formação católica. São conflitos que muitos de nós não temos a determinação de enfrentar, mas que Eugênio teve, e com bastante coragem. E, neste livro sincero, resolveu nos revelar grande parte desses conflitos, bem às vésperas de completar os seus oitenta anos. Diferentemente das pessoas que apenas se contentam com ritos e celebrações da igreja, Eugênio pergunta para si mesmo: “Por que preciso de um Deus em minha vida?”; e como “A consciência é um árbitro implacável”, ele, com clareza, nos revela algumas das respostas que pacificaram o seu espírito.
Eugênio Giovenardi
Tão marcante foi o convívio e a relação com a igreja que, passados cinquenta anos de sua pacificação, todas essas marcas podem não ter desaparecido por completo. Ou será que as minhas próprias convicções nublaram a clareza de minha interpretação? Entretanto, busco no próprio autor amenizar minha consciência e meu medo: “Penso que sejam as dúvidas que me fazem viver e sobreviver.” A cada imprecisão, uma luta do leitor para tentar combater internamente o que lê. Diante de tantas agruras nos deparamos com o prazer imensurável sentido pelo autor ao se libertar das imposições e da crença, de poder questionar sem temer respostas, como fez Anísio Teixeira. Sentimos a sensação de um voo único e novo dentro da multidão em plena Paris. E como se não bastasse: “De repente, Paris se esvaziou. Silenciaram as manifestações de protestos. Agora éramos os únicos habitantes da cidade.” O ano era 1968 e, em plenas barricadas, surge numa esquina a jornalista finlandesa (dona Hilkka Mäki) que buscou sua opinião sobre a então situação política vivida pela França. Desse encontro se inicia uma caminhada longa e duradoura. Quebrando mais um paradigma da igreja, onde a mulher é acusada de tantos males.
Outra característica marcante que me remete aos clássicos franceses, como Stendhal, são as citações utilizadas pelo autor, como Carl Sagan, onde “É permitido não ter certeza”, Agostinho de Hipona, santo, filósofo e teólogo do início do cristianismo, T. S. Eliot, “A cultura de um povo é a encarnação de sua religião”, Fiódor Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo é possível”, Derek Walcott: “É ilusório pensar que seja possível prescindir dela (religião) ou ser indelevelmente formado por ela.” Tais citações mostram que tantos já se debruçaram sobre tais temas, mas, mesmo sendo tão discutido, Eugênio consegue nos surpreender e instigar o pensamento.
Sem dúvida, No meio do caminho é um livro polêmico, intrigante e profundo. E demonstra um elevado nível filosófico e literário. Escrito de forma madura por quem chegou a um alto nível de conhecimento, de vida e de domínio da técnica literária, pautada na leitura e na vivência plena de um observador nato. Surpreende, pois como já foi dito, a fuga da forma habitual como são escritas as biografias, enriquece ainda mais a obra, que abre um horizonte incógnito e íntimo. Um mundo secreto, apesar de aparentemente conhecido. É como se percorrêssemos todos os dias uma floresta, por suas trilhas mais diversas e, de súbito, saíssemos do caminho conhecido para nos depararmos com o interior da selva, e passássemos a enxergá-la, desde a visão microscópica à amplitude das copas frondosas de uma complexa mata espessa. Uma viagem para poucos que não tenham medo de se perder na imensidão das certezas e das dúvidas.
Como um clássico, é impossível terminarmos a leitura sem sairmos marcados pelo surpreendente mundo que nos foi apresentado pelo mestre Eugênio Giovenardi.


Saudades do Mestre Lêdo Ivo - Daniel Barros

Saudades do Mestre Lêdo Ivo
Daniel Barros*

Muito provavelmente num dia quente e ensolarado, pois assim costuma ser neste mês, nasce em 18 de fevereiro de 1924, em Maceió, capital do Estado de Alagoas, uma criança que muito orgulho dará a alguns de seus coestaduanos. Digo alguns, porque suas palavras honestas, firmes e contestadoras causaram ódio e desprezo à elite de Alagoas.
Filho de Floriano Ivo e Eurídice Plácido de Araújo Ivo, o menino Lêdo Ivo, que logo se tornaria um dos maiores representantes da Literatura Brasileira, aos vinte anos estreia com As imaginações, livro de poesia de 1944. No ano seguinte, lança Ode e Elegia, recebendo o Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras. E assim teve início a belíssima carreira literária de um mestre, que foi contista, ensaísta, cronista, romancista e, sobretudo, poeta, um fantástico poeta.
Lêdo Ivo 
Em 1940, depois de ter feito o primeiro e segundo graus em sua cidade natal, transfere-se para Recife onde participa em 1941 do I Congresso de Poesia do Recife. Em 1943, o autor de Ninho de Cobras se muda novamente, desta vez para a cidade do Rio de Janeiro. Ali se matricula na Faculdade Nacional de Direito do Brasil. Paralelo às atividades na faculdade, passa a colaborar em suplementos literários e a trabalhar como jornalista profissional na imprensa carioca.
Em 1949, forma-se em Direito, nunca exercendo a profissão. Prefere continuar no jornalismo. Dois anos antes estreia como romancista com Alianças e recebe o Prêmio da Fundação Graça Aranha pela obra. Ano também em que pronuncia no Museu de Arte Moderna de São Paulo a conferência “A geração de 1945”.
O romance Ninho de cobras é publicado em 1973, mas Lêdo Ivo não ousava chamá-lo de romance, referindo-se às atuais “circunstâncias que vivemos num tempo estético marcado pela emergência de gêneros ou textos híbridos, sem nome”. E continua: “Escrevi uma história mal contada, como as narram os ciganos e ladrões de cavalos de minha terra natal.” Havia na época razões de sobra para que usasse essa técnica de narrativas partidas e colisivas, pois foi escrita “... numa época de ditadura e, por sua vez, se situava também, historicamente, numa outra ditadura, a do Estado Novo de Getúlio Vargas”. Tudo acontece num mundo de terror e perseguição, em que nunca se sabe a verdade. Essa técnica se ajustava ao clima estético de então, período de ditadura, onde a dubiedade, a fragmentação do texto sempre refletia que “... o deslocamento dos pontos de vista e os focos narrativos abalaram para sempre a austera linearidade do romance praticado nos últimos séculos”.
Personagem principal de Ninho de cobras, a raposa fora baseada numa memória de infância do autor, quando presenciou, no sítio onde morava, o assassinato de uma raposa, acusada, supostamente, de roubar galinhas, e morta a pauladas. Dando-lhe desde menino, diante deste episódio, consciência para melhor observar as injustiças e perseguições. A cena fica em sua memória para posteriormente voltar num dos poemas de Finisterra (Prêmio Luísa Cláudio de Sousa — poesia — do PEN Clube do Brasil, Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, Prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal e Prêmio Casimiro de Abreu do Governo do Estado do Rio de Janeiro.). No texto, a raposa retorna da floresta e faz sua aparição.

A manhã raiante se manchava
Do sangue escuro da raposa
Morta no chão memorável.

A raposa perambula pelas ruas de Maceió e é “novamente” morta a pauladas por policiais. As críticas que surgiram após a publicação revelam que a obra é sempre ambígua e controversa, e marcada pelo espírito dos escritores nordestinos que vivem num país dividido entre a riqueza e a miséria. E cito mais uma vez o autor de Ninhos de cobras analisando sua própria obra: “... nós, romancistas do Nordeste, denunciadores incômodos e incorrigíveis da pobreza e da injustiça, dos pesadelos e das calamidades, sempre nos distinguimos de nossos confrades do Centro e do Sul pelo nosso ar de estrangeiros, de emissários dessa interminável Oriente que é a nossa terra natal.”
O espírito alegre, honesto, espirituoso e ao mesmo tempo combativo e justo nunca deixou o nobre alagoano. O que ficou claro em um dos seus últimos discursos durante uma reunião da Academia Brasileira de Letras, em 4 de agosto de 2011. Lêdo Ivo leu aos colegas um libelo, um manifesto contra a inquietação da plateia promovida por seu desafeto, o também imortal Eduardo Portella, durante um discurso que fez dias antes, numa conferência em homenagem a Gonçalves de Magalhães. Encerrou seu pronunciamento citando Lucrécio: “É doce envelhecer de alma honesta.”
O Brasil perde seu ilustre filho, mas, sem dúvida alguma, é Alagoas que mais sofre, por perder tão nobre, alegre e combativo filho, num momento em que o Estado passa por tamanha necessidade de homens com tal bravura e suprema honestidade, como foi, e ainda é o imortal Lêdo Ivo.

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Daniel Barros, escritor alagoano, reside em Brasília.