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sexta-feira, 28 de abril de 2017

O SILÊNCIO DE UM HOMEM ENTRE RUÍDOS João Carlos Taveira*

O SILÊNCIO DE UM HOMEM ENTRE RUÍDOS


João Carlos Taveira*



O escritor Eugênio Giovenardi milita no verso e na prosa com a desenvoltura de quem sabe o caminho das pedras, em sua caminhada pelo mundo e pelos insondáveis mistérios da metafísica. Mas o seu forte, pelo visto, é o gênero em que melhor se acomoda dentro da linguagem: o romance de ficção, no qual já publicou cinco títulos dos onze que constam de sua bibliografia. 
Seu novo trabalho nesse campo saiu em meados de 2011, e se intitula Silêncio. É um romance que, pela proposta de conceitos e desmembramentos de significados, pode ser perfeitamente incluído naquela lista de obras ousadas e bem-sucedidas, embora não muito fáceis de assimilação. O volume, de 198 páginas, em formato 14X21, traz capa de Thiago Sarandy e editoração eletrônica de Cláudia Gomes, com acabamento bem cuidado da Thesaurus, e está disponível nas boas casas do ramo e também pela internet no site da editora.

Todo autor almeja escrever um livro perfeito, mas poucos o conseguem. A tarefa é árdua e espinhosa, por iniciar-se além do mundo real e materializar-se no plano consciente e palpável da natureza humana. Mas Eugênio Giovenardi, neste caso, busca alcançar a proeza do intento com bons resultados. Embora não tenha conseguido de todo livrar-se de referências autobiográficas, contidas, aliás, em seus romances anteriores, neste livro da maturidade o autor de As pedras de Roma se enveredou pelas florestas obscuras do inconsciente e trouxe à luz a história de seres díspares criados à nossa imagem e semelhança; portanto, personagens de carne e osso — em toda a sua extensão física e psicológica. Com exceção de Lídice, que surge como um anjo e, como tal, desaparece, para ao fim e ao cabo da narrativa juntar-se ao protagonista, mas que em momento algum se entrega ao jogo ou controle de seu criador.


A ação se passa em Brasília e arredores, em cenários físicos e extrafísicos, em que Pedro de Montemor é personagem principal e narrador. E ele, com frases curtas e domínio vocabular, descreve na primeira pessoa a sua experiência vivida e, até certo ponto, compartilhada, em flashes ou lampejos de consciência. São angústias e desassossegos a incomodar a visão de um ser atormentado pelas conquistas do progresso em contraste com os recuos de gestão numa administração arcaica, cada vez mais inapta e incompetente. E isso se dá no coração de uma das mais modernas cidades do mundo, ao lado, naturalmente, da insistência de tenebrosos fantasmas a perseguir o trajeto de quem já caminha meio de lado, devido ao peso excessivo de um viver entre as lembranças do passado e as incertezas do futuro. E mais: Pedro de Montemor busca nos mistérios da própria vida uma certeza para seus questionamentos e, como faz com os personagens do romance, nos instiga a acreditar num mundo paralelo situado bem na rota de suas descrenças ou perquirições. Ao contrário de Hamlet, para ele, o silêncio é o limite.

Na construção do romance, segundo palavras do próprio autor, combinam-se episódios verídicos e ficcionais. Ao redor deles, o silêncio fala de maneira intemporal. “O cérebro, envolto pelo silêncio interior e exterior, fabrica associações intermináveis, superpostas e contrastantes de fatos, palavras, gestos, atos e pensamentos, expectativas e desejos produzidos no passado, memorizados no presente e lançados ao futuro.” O silêncio é desordenado. As vozes interiores se atropelam e nem sempre respeitam a ordem e a sequência de sua origem. “A liberdade do silêncio libera o inconsciente e exacerba o consciente.” Toda essa história pessoal é personificada e projetada nos indivíduos e grupos que intermitentemente formam os laços da convivência social.

Eugênio Giovenardi
Eugênio Giovenardi, além de escritor, é também sociólogo, e sabe que a vida se situa mais dentro da visão de um Guimarães Rosa que da de um Paulo Coelho. E que os perigos são numerosos, principalmente para aqueles que trazem, desde sempre, as marcas de uma formação baseada nos princípios da fraternidade entre os homens, da liberdade inalienável do indivíduo, da igualdade de todos os seres humanos e — mais forte que tudo — do respeito a todos os seres vivos deste planeta. E isso parece bastante, mesmo quando colocado de maneira não muito marcada nos entremeios de uma narrativa ficcional pouco linear. De forma insistente e quase obsessiva, o silêncio — que para Montemor é um fim em si mesmo — atravessa as páginas do livro, sem deixar vestígios. 
João Carlos Taveira

Brasília, 31 de outubro de 2011.

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*João Carlos Taveira é poeta e crítico literário, com vários livros publicados, entre os quais O Prisioneiro (1984), Na Concha das Palavras Azuis (1987), Canto Só (1989), Aceitação do Branco (1991). Tem poemas traduzidos para o russo, o romeno, o espanhol, o italiano.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Todos os direitos reversados - Maurício R. B. Campos

Todos os direitos reversados




No último Over Book ficamos conhecendo um pouco sobre domínio público. O direito autoral garante ao autor a proteção de suas criações literárias, afinal, essa criação tem seus custos, nem que seja no mínimo o custo de oportunidade: o autor poderia estar fazendo qualquer outra coisa no tempo em que está sentado à frente do teclado. Dito isso, as pessoas não podem sair por aí explorando Hans Solo e a princesa Léia, pois eles foram criados por George Lucas que vendeu esse direito para a Disney.
Mas e aquela história sobre o encontro de Hans Solo e Léia com o capitão Kirk que eu li naquele site de fanfic? Fanfic pretende ser algo feito pelos fãs e disponibilizada gratuitamente. De qualquer maneira, legalmente falando, fanfic é violação de direitos autorais. Mas os advogados da Disney não vão processar o Stormtrooper da ZL por que ele escreveu essa história na qual mil donuts foram lançados no poço de sarlacc. Não há interesse econômico. Mas se o Stormtrooper da ZL lançar esse livro na CCXP e ele vender que nem Coca-Cola no boteco, aí os melhores advogados da galáxia vão afiar suas canetas e abocanhar todos os lucros do pobre Stormtrooper da ZL. 
Portanto, o que vale é o interesse econômico. Mas será que existem pessoas que discordam disso? Sim, e elas criaram um movimento cultural chamado Copyleft. Seu nome se origina do trocadilho com o termo copyright, literalmente, copyleft pode ser traduzido como "esquerdo de cópia" ou "permitida a cópia".
Copyleft, ou direito de cópia, é uma forma de usar a legislação de proteção dos direitos autorais com o objetivo de retirar barreiras à utilização, difusão e modificação de uma obra criativa devido à aplicação clássica das normas de propriedade intelectual, exigindo que as mesmas liberdades sejam preservadas em versões modificadas. Ele difere assim do domínio público, que não apresenta tais exigências; enquanto o domínio público permite qualquer utilização de uma obra, o copyleft, tem, via de regra, a única exigência de se poder copiar e distribuir uma obra. O copyleft também não proíbe a venda da obra pelo autor, mas implica a liberdade de qualquer pessoa fazer a distribuição não comercial da obra.
O copyleft denomina genericamente uma ampla variedade de licenças que permitem, de diferentes modos, liberdades em relação a uma obra intelectual. O movimento surgiu nos Estados Unidos vinculado às áreas de TI, programadores que não queriam prender suas criações a seu ponto de vista, mas dar-lhes possibilidade de crescer e continuar dando inusitados frutos nas mãos de outros criadores.
O copyleft pode ser completo ou parcial. A diferença entre copyleft "completo" e copyleft "parcial" se refere a uma outra questão: o copyleft completo é aquele em que todas as partes de um trabalho (exceto a licença em si) podem ser modificadas por autores secundários. O copyleft parcial exime algumas partes do trabalho das obrigações do copyleft ou de alguma forma não impõe todos os princípios do copyleft. Veja um exemplo de declaração de direitos de personagem open source:
"A personagem de Jenny Everywhere está disponível para uso por todos, com uma única condição. Esse parágrafo deve ser incluído em qualquer publicação envolvendo Jenny Everywhere, a fim de que outros possam usar essa propriedade como quiserem. Todos os direitos reversados."
Essa expressão todos os direitos reversados é um trocadilho com a icônica expressão todos os direitos reservados. Jenny Everywhere é um exemplo de personagem open source.
Aparecendo inicialmente em 2002 na comunidade online Barbelith, Jenny Everywhere foi criada pelo artista de quadrinhos canadense Steven Wintle e é a primeira personagem código-aberto (open-source). Wintle, que utilizou o codinome Moriarty, a descreveu dizendo, Ela tem um cabelo curto e escuro. Ela geralmente usa óculos de aviador no alto da cabeça e um lenço envolve seu pescoço. Ou então, ela usa roupas confortáveis. Ela é de tamanho médio e tem uma boa imagem corporal. É uma pessoa cheia de confiança e carisma. Ela parece ser asiática ou indígena. Ela tem um sorriso fácil.
Maurício R. B. Campos
Depois desse pontapé inicial dado por seu criador, a personagem estrelou dezenas de HQs, contos na internet e filmes independentes. Centenas de artistas debruçaram-se sobre essa proposta e criaram suas próprias versões de Jenny Everywhere, que chegou até mesmo a ganhar uma data comemorativa: o Jenny Everywhere day. Para saber mais sobre Jenny Everywhere clique aqui.
A partir de então muitos e muitos outros personagens foram criados dentro deste escopo de código aberto. A Wikia hospeda a PDSH, que é uma enciclopédia de super-heróis em domínio público, e dentro dessa wikia há uma seção com dezenas de novos personagens que podem ser utilizados livremente (essa Wikia é em inglês).

segunda-feira, 24 de abril de 2017

O voto - Sonia Regina Rocha Rodrigues

O voto

    O doutor Rodrigo estava fascinado pelo brinde que ganhara de um laboratório que fabricava vitaminas para crianças.
    Tratava-se de um pôster enorme, que ocupava quase toda a parede livre do consultório. Posavam para uma foto, em plena floresta, uma dezena de bichos lindamente desenhados.
    Desde o primeiro dia em que colocou a bicharada na parede, as criancinhas ficavam olhando encantadas, rindo e fazendo os comentários mais interessantes.
    Rodrigo começou a fazer uma enquête entre os seus pequenos pacientes:
    — Diga lá, de que bicho você gosta mais?
    A coisa virou mania, tanto que o doutor tinha em sua gaveta uma planilha onde anotava a preferência da garotada. Observou que os menorzinhos e tímidos escolhiam o coelho e a coruja; os falantes e estabanados escolhiam a arara ou o macaco. Os que escolhiam o canguru ou a girafa pareciam ser os mais criativos. Já o tigre e o leão deixavam o doutor confuso: ele não decidira ainda se as crianças que escolhiam as feras eram líderes natos, ou crianças que queriam o poder para livrar-se de perseguições ou se eram agressivas, manifesta ou veladamente. O fato curioso é que ninguém, nem uma só criança votara no hipopótamo. 
     Quando Rodrigo era menino, em sua cidade havia uma fábrica de biscoitos que adotara o hipopótamo como seu símbolo e distribuía para a molecada bonequinhos, figurinhas e outros brindes com a aparência de um hipopótamo rosado e risonho, uma verdadeira gracinha. As crianças da cidade grande, porém, não sentiam nenhuma simpatia pela bocarra escancarada com imensos dentes. 
     Certa tarde, entrou no consultório pela primeira vez um garotinho aí de uns quatro anos, e Rodrigo, como de costume, sugeriu:
     — Vota aí, escolhe um bicho.
      O menino, contudo, cruzou os braços e ficou muito quieto, com uma carinha zangada.
     — Vota, filho, o doutor tá mandando – insistiu a mãe.
     Mandando? O doutor sentiu-se desconfortável com o verbo:
     — Não, não, não estou mandando nada. É uma brincadeira. Eu vou juntando os votos da criançada para saber qual é o bicho preferido. Então, que bicho você escolhe?
       E o menino, decidido:
       — Nenhum.
       A mãe estava chateada:
       — Escolhe um, filho. O doutor quer saber.
       — Pois então ele já sabe. Eu não escolho nenhum e pronto.
      O doutor achou engraçada a preocupação da mãe em agradar o médico e a determinação do menino de não arredar pé de sua opinião. Quis chegar ao fundo do mistério:
      — Certo, você não escolhe nenhum. Posso saber por quê?
      — É porque o meu bicho preferido é a tartaruga e aí não tem tartaruga.
     Ali estava um garoto que sabia o que queria, que, na sua inocência, não se deixava influenciar pela opinião alheia, e que, sem dúvida, iria se tornar um adulto que não abriria mão de seus princípios.
      Qualquer que fosse o fascínio especial da tartaruga, que qualidades esse bichinho cascudo e vagaroso possuía para encantar o menininho, o fato é que o doutor ficou a pensar que ali estava uma das maiores lições de civismo que recebera em sua vida. E falou em voz alta:
      — Menino, você tem razão. Nas próximas eleições, também vou votar na tartaruga.




Sonia Regina Rocha Rodrigues
Santos/SP



Sonia Regina Rocha Rodrigues
Biografia: Sonia Regina Rocha Rodrigues é médica e nasceu em Santos, SP, em 21 de maio de 1955. Escreve poesias, contos, crônicas e romances. Em 1996, foi classificada na fase municipal do certame Mapa Cultural Paulista, representando a cidade de Bebedouro/SP, com o conto "A auditoria". Foi co-editora do jornal literário Um Dedo de Prosa, de agosto de 1996 a dezembro de 1998 e da revista de arte Chapéu de Sol, de janeiro de 1999 a 2000. Publicou Dias de verão (contos e crônicas - 1998) É suave a noite (contos e crônicas - 2014) e Coisas de médicos, poetas, doidos e afins (2104) .Atualmente gerencia o site:
soniareginarocharodrigues.blogspot.com.br
Página no Facebook:
https://www.facebook.com/soniareginarocharodrigues/?ref=bookmarks



sábado, 22 de abril de 2017

A ESTREIA LITERÁRIA DE PEDRO MANZKE João Carlos Taveira*

A ESTREIA LITERÁRIA DE PEDRO MANZKE


João Carlos Taveira*


Acabo de ler o livro de estreia de Pedro Manzke, A Irmandade dos Cavaleiros Probos, com indisfarçável entusiasmo. Trata-se de uma história bem urdida e bem acabada, que apresenta uma novidade em termos narrativos, pois transita entre o real, o surreal e o onírico. Ao descrever a vida de três rapazes (Pedro, Maximiliano e Aleixo), o autor nomeia uma voz feminina para acompanhar as aventuras e desventuras dos jovens colegas de escola, num período que vai do início do ensino médio até o ingresso na faculdade, embora os dois primeiros se conhecessem desde a primeira infância. E entrega a essa jovem ‘sem nome’ o destino de personagens díspares e tão contraditórios. Esse narrador feminino, por sinal, tem vida abundante no percurso da história e, de certa forma, compõe o quarto elemento da irmandade proposta, ainda que de maneira onisciente.

Pedro Manzke
A narrativa, na primeira pessoa, foi construída em 27 capítulos curtos, e todos eles apresentam um título, além da numeração tradicional. A linguagem, simples e direta, às vezes alcança um tom coloquial propício ao relato autobiográfico, mas só na aparência, pois o Pedro da história nada tem a ver com o Pedro que assina o livro. (Talvez a medicina seja o único ponto comum entre autor e personagem.) E assim, em ziguezague, os fatos descritos vão ganhando contornos cada vez mais dramáticos e surreais. Embora ofereça uma leitura não linear, o texto em nenhum momento deixa o fio condutor obscuro ou imperceptível; e a narradora utiliza-se da fala dos personagens para criar e expor um arcabouço psicológico e afetivo, e dar-lhe verossimilhança enquanto expressão dramática. Mas todos eles estão condenados à dilaceração ou ao isolamento, e isso se manifesta muito claramente nas ações coletivas e nos monólogos interiores.

Assim, A Irmandade dos Cavaleiros Probos vai aos poucos unindo o real e o onírico num mesmo espaço físico e geográfico. O tempo passa e a aranha vai tecendo a sua teia, inexoravelmente. Os jovens adolescentes agora são adultos e cada qual com seu problema pessoal e intransferível; e todos com suas vitórias e alegrias e também com suas aflições e desesperanças. Estão diante de um novo mundo em construção e, ao mesmo tempo, fadados à aceitação do caos que a vida lhes impõe. Para Pedro, a vida é um sopro; por isso precisa ser vivida intensamente. Maximiliano, materialista convicto, procura viver o instante sem medir consequências; quase um hedonista. Já Aleixo, de origem bizantina, cultiva o conhecimento intelectual e mantém-se calado até quando bêbado; mesmo diante de situações adversas, nunca perde o ar contemplativo e absorto. Nem o controle da situação.

Por sua vez, a narradora, ao descrever-se, deixa bem claro: ela nunca foi uma “menina linda, invejada detentora das notas mais altas e, de quebra, boa em todos os esportes”. Noutro trecho, assim se manifesta: “Estou com trinta e dois anos, recém completados, casei-me, tenho dois filhos e utilizo remédio para depressão diariamente. O príncipe encantado não apareceu. Contentei-me com a realidade.” E conclui: “Minha vida esteve e está longe de ser a de uma Madame Bovary.” (...) “Fora isso, porém, não tenho muito do que reclamar. Estou ciente do meu devido lugar como mera coadjuvante — os astros da história são Pedro e Max.” Nega, assim, a importância de Aleixo e a de seu cachorrinho Lulu, que tem incontestável participação na trama. E essa contradição nos oferece a princípio a chave do mistério: para ela, Pedro e Maximiliano representam o verdadeiro ideal do amor romântico, mas tanto um quanto o outro não chegou a ser um típico candidato a marido; nunca puderam lhe oferecer mais que o puro sentimento de amizade.

Publicado em 2013 por Escrituras Editora, o livro não é de fácil classificação. Romance? Novela? Pode filiar-se aos dois gêneros e a nenhum deles. Tudo vai depender do leitor. Mas isso pouco importa. O certo é que a ficção de Pedro Manzke, jovem autor gaúcho-brasiliense que vive em São Paulo, vem enriquecer o momento atual da literatura brasileira, por sua inventividade e ousadia.
João Carlos Taveira


Brasília, 29 de outubro de 2014.

*João Carlos Taveira, mineiro de Caratinga, mora em Brasília desde 1969. Tem vários livros publicados, entre os quais O Prisioneiro (1994), Aceitação do Branco (1991), Arquitetura do Homem (2005). Em 2012, o escritor Alan Viggiano escreveu e publicou A Fortuna Poética de João Carlos Taveira, livro em que traça a trajetória literária de Taveira.



quinta-feira, 20 de abril de 2017

Moniz Bandeira - Indicado ao Prêmio Nobel - Maurício R. B. Campos

Moniz Bandeira - Indicado ao Prêmio Nobel


Moniz Bandeira
O historiador e cientista político Moniz Bandeira foi indicado pela UBE (União Brasileira de Escritores) para concorrer ao Prêmio Nobel de Literatura 2015. Moniz Bandeira, que tem morada na Alemanha, é Doutor Honoris Causa pelas Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil, de Curitiba. É também portador da Bundesverdienst Kreuz (Erster Klasse), (Cruz do Mérito - Primeira Classe), conferida pelo governo da República Federal da Alemanha, Grande Oficial da Ordem de Rio Branco (Brasil) e comendador da Orden de Mayo (Argentina). E sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil e da Academia de Letras da Bahia.
O nome de Moniz Bandeira recentemente foi envolvido em uma polêmica nas eleições presidenciais brasileiras de 2014. O historiador enviou uma carta ao PSB logo após a queda do avião do candidato pelo partido na chapa de Marina Silva, Eduardo Campos. O conteúdo dessas cartas aparentemente poderiam ser interpretadas de diversas maneiras, na medida em que o historiador dava asas a teorias conspiratórias envolvendo a CIA, a agência de inteligência norte-americana, e a queda do avião de Campos. Essa carta cita  a expressão "Regime Change" (mudança de regime), que significaria uma mudança de regime praticada pela CIA. As teorias conspiratórias a respeito de mudança de regime envolvem os eventos das mortes de Orlando Letelier (ex-ministro de Salvador Allende), Juan José Torres (ex-presidente da Bolívia), João Goulart (Jango), Juscelino (JK), todos mortos no ano de 1976. Os dois primeiros foram assassinados. Os dois últimos morreram em condições suspeitas e há um ex-agente da repressão uruguaia em liberdade condicional, no Brasil (RS) que afirma ter tomado parte na conspiração que matou Jango. A carta de Moniz também leva em consideração inúmeros relatos de jornalistas norte-americanos, os quais tem chamado a suspeita para o caso, como Wayne Madsen.
Maurício R. B. Campos
Moniz Bandeira foi perseguido pelo Regime Militar, tendo se exilado no Uruguai por um tempo, sempre mantendo sua carreira literária em atividade. Por carreira literária entenda-se ensaios. Quando se pensa em prêmio Nobel, o grande público imagina um prêmio para romancistas, no máximo para poetas, mas na verdade trabalhos essencialmente acadêmicos também fazem parte dos elementos utilizados para fazer de um autor um escolhido pela Academia Sueca. O primeiro prêmio para um historiador foi em 1902, para o historiador alemão Theodor Mommsen. Moniz Bandeira escreveu poemas também, mas isso foi há mais de sessenta anos, aparentemente o autor não continuou a inflamar sua veia poética, ou pelo menos não publicou o que escreveu (se) desde então.
Vivendo desde o ano 2000 na Alemanha, Moniz Bandeira irá concorrer com outros 198 proeminentes nomes da literatura mundial ao prêmio este ano. Em um comunicado, o presidente da UBE, Joaquim Maria Botelho, justificou a indicação: "Moniz Bandeira é um intelectual que vem repensando o Brasil há mais de 50 anos. Com fundamentação absolutamente consistente, suas narrativas são exercícios da literatura aplicada ao conhecimento dos meandros da política exterior, não só do Brasil mas de outros países cujas decisões afetam, para o mal ou para o bem, a vida, a nacionalidade e a própria identidade brasileira", disse Botellho.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

FOGO AMIGO - Paulo Tadeu Poli

FOGO AMIGO

                       
A escada com degraus de madeira rangeria até sob o peso de crianças, que há muito, por ali não se via. O corrimão, também de madeira, confessava o uso quase secular, da mesma forma que os degraus, todos muito gastos. Ao suportar os passos vagarosos do velho obeso, com os seus mais de cento e vinte quilos, estalavam como se daquela vez não fossem suportar.
                        Otávio sabia que outra ladainha o aguardava, quando chegasse ao térreo. Era sempre assim: o aluguel que pagava quando podia dava contorno aos argumentos que, como o atraso, sempre se repetiam. 
                         Era uma pousada decrépita, mas nenhuma outra o aceitaria e mesmo nessa corria sérios riscos de ser expulso, afinal nunca se excedera tanto na soma dos débitos.
                         Tinha ódio mortal da proprietária, que também morava ali, e o fazia se alimentar de sopas que mais pareciam lavagem e com broas que se assemelhavam a pedras. Ainda assim só engordava. Divertía-se à imaginar que um dia a estrangularia, ela, tão caquética e pequena. Seria como matar uma galinha. Mas não, já tinha matado alguém um dia e por isso estava ali.
                         
O curare, extraído de plantas selvagens, tem imenso poder em interferir na contratilidade da musculatura. É um relaxante muscular por excelência. No meio indígena sempre foi usado para abater caças de grande porte. Aplicado nas pontas das flechas ou nas zarabatanas faz com que grandes animais desabem ao chão por perderem o domínio dos seus membros e, dependendo da dose, podem ter paralisada a respiração.
                         O Dr. Otávio cumpria plantão de clínica médica em hospital público. Sabia através dos jornais que um renomado jurista havia sido internado em UTI, de um importante hospital particular, após cirurgia cardíaca. O prognóstico do paciente era bom, cumpria a rotina adotada para pós-operatórios de grandes procedimentos, que em 1983 ainda eram muito invasivos e necessitavam de mais cuidados e tempo para a recuperação. Telefonou para o hospital, pediu para que transferissem a ligação para a UTI e perguntou se havia vaga, após relatar o caso clínico de um paciente seu. O colega que o atendeu informou que o hospital havia se descredenciado de todos os convênios e recebia, portanto, apenas pacientes particulares. Que haveria vaga caso se realizasse o depósito na tesouraria do hospital.  
                            O Otávio conversou com a família do seu paciente, após ter levantado os custos iniciais para a internação. A despesa era demasiada para os pequenos comerciantes, filhos da vítima. Porém diante da gravidade do problema fariam o possível, embora não tivessem crédito suficiente para aquele montante. Otávio, que vinha tratando há anos daquele paciente que no último mês teve agravado o seu quadro clínico, disse que financiaria em seu nome aquela despesa e passaria para os familiares o carnê a ser quitado. Assim foi feito e no dia seguinte o paciente foi transferido para a UTI, aquela em que estava o jurista.
                           Como médico de paciente ali internado Otávio tinha livre acesso àquele setor. Andava de um leito a outro observando os pacientes, olhando e analisando as prescrições de cada um, vez ou outra, discutia com um dos colegas daquele ambiente algum detalhe acerca de diagnósticos ou tratamentos. 
                             Localizou o leito do célebre safenado, que sedado, dormia. Aproximou-se e com a máxima discrição foi soltando aos poucos, e com delicadeza, as fitas adesivas que prendiam os acessos venosos (as agulhas) ao braço do enfermo. Assim quando houvesse algum movimento brusco elas sairiam das veias. Na sequência tirou uma seringa que continha três ampolas de Pavulon, do bolso do uniforme que vestia, e injetou no soro. Esse medicamento que trouxera do outro hospital é um potente relaxante muscular usado nas anestesias gerais, derivado do curare.  
                              Retornou ao leito do seu paciente e ali ficou a conversar com ele demonstrando a maior naturalidade possível. A bomba de infusão que mantinha o gotejamento do soro do jurista fornecia quantidades exíguas dos medicamentos diluídos.  Dessa forma demandou considerável tempo para que o alarme do oxímetro disparasse denunciando que a concentração de oxigênio nas células tornara-se crítica. A enfermeira foi até ao leito conferir no marcador a saturação. Viu que estava muito baixa e acionou a emergência. O médico intensivista surgiu de imediato solicitando o laringoscópio para promover a entubação. O paciente tornou-se agitado e teve que ser contido. O acesso venoso, como previsto, foi perdido. Novos frascos de soro com novos equipos e agulhas foram providenciados e novas veias foram puncionadas. Todo o material anterior foi para o lixo hospitalar, conforme a rotina de qualquer UTI, inclusive o frasco de soro que continha o Pavulon, derramado no chão em sua totalidade quando a agulha saiu da veia.
                            A parada respiratória foi de tal forma abrupta que quando a ventilação mecânica foi concluída as pupilas do paciente já estavam em midríase paralítica ( dilatadas ao máximo e indiferentes à incidência da luz) caracterizando morte cerebral. O paciente ficou meses em vida vegetativa até que sobreviesse o óbito.
                             A repercussão foi imensa como seria de se esperar. A imprensa questionou a diretoria do hospital para uma explicação, lúcida e plausível, que justificasse a repentina reversão de um quadro clínico até então favorável. Os médicos da UTI não tinham essa resposta. A banca de advogados associada ao jurista e do qual exibia o nome como protagonista, processou o hospital. A defesa começou a reunir elementos técnicos: no depoimento do plantonista chefe havia o relato de que teria sido uma parada respiratória, não uma parada cardíaca, além do mais, a restrição de oxigênio exigiu do coração esforço adicional para compensar esse fator e, apesar disso, suportou. Não houve parada cardíaca ou insuficiência do órgão operado, sequer ocasional, os eletrocardiogramas monitorados e registrados provam a eficiência do sistema cardiovascular. Portanto, a falência do sistema nervoso central (do cérebro), decorreu da parada respiratória e essa de outra ou outras causas, até então desconhecidas. 
                               Secundariamente às informações fundamentais acima expostas, disse “en passant,” que ao entubar o paciente, naquele instante em que se estabeleceu a máxima urgência, não teve tempo para usar relaxante muscular - derivados do curare - para esse fim, entretanto, conseguiu o intento com tal facilidade que dava a impressão de que teria usado tal produto. Como esse comentário era subjetivo, afinal tratava-se de uma impressão, uma sensação vaga, ninguém julgou relevante.
                                   Passados quase dois meses do dia fatídico para o jurista, quando o crime tomava contornos da perfeição, o Gouveia, o melhor amigo do Otávio, aquele que em tempos recentes fornecera o ombro para amparar o pranto do colega que terminara um casamento de seis anos, esse grande colega (o Gouveia também era médico) compareceu em um congresso de medicina em Fortaleza e no hotel onde se desenrolava esse evento, e no qual também os participantes se hospedavam, viu o médico intensivista, aquele que atendera o famoso advogado cuja família e sócios agora o processavam, e resolveu se apresentar, pois lhe ocorrera, de repente, que um determinado comentário poderia servir de bálsamo, de alívio, para o colega.
                        Não chegou de supetão, claro, apresentou-se apenas e mais tarde, numa segunda ocasião, quando notou que o colega estava refastelado numa das poltronas do Hall do hotel sentou-se próximo e, de chofre, disse: - o eminente advogado cuja banca te processa não era, ao contrário do que se propala, tão eminente assim, na vida privada. Resolvi te abordar porque tenho um amigo que também é colega nosso que foi cunhado dele por um período. Digo foi, no pretérito, porque houve a separação do casal e também porque o advogado agora está em estado vegetativo. O casamento com a irmã findou depois de agressões constantes, de manipulações sem fim, de muita mentira e violência. Ela sofreu terrivelmente por muitos anos por causa do casal de filhos pequenos e, na separação, ele ainda conseguiu ficar com as crianças além de deixá-la em completo desamparo. A sua condição de destaque perante os juízes fez com todas as suas alegações fossem aceitas, sem qualquer reparo. Felizmente, para a irmã do meu amigo, esse transtorno que te afeta, agora que ele está tecnicamente morto, para ela é um grande alento, já que poderá pleitear a guarda dos filhos.
                     Encerrada a exposição dos fatos o Gouveia tomou fôlego e observou a reação do colega. Percebeu a surpresa no seu semblante e surpreendeu-se com a pergunta: - qual é o nome desse seu amigo? “Otávio Augusto Hermann Travassos” disse o Gouveia. O colega pôs-se em pé como se fosse impulsionado por uma mola e saiu em direção à recepção do hotel sem sequer se despedir.
                         Otávio recebeu a ligação do Gouveia que lhe relatou o ocorrido, na pretensão de desabafar ante a grosseria do intensivista, sem jamais supor que o Otávio conhecesse o colega que ele xingava naquele momento. Outra vez surpreendido Gouveia ouviu do amigo um agradecimento irônico pelo que acabara de fazer, por ter comentado sobre assuntos familiares seus com um estranho. Em acréscimo ouviu do Otávio que iria viajar sem destino, que não o procurasse mais.
                         
Paulo Tadeu Poli
Havia um plano B, elaborado ao longo desses dois meses, quase engavetado em decorrência da bonança das investigações que não tinham qualquer base para sustentar-se. Agora, porém, graças à pontaria do fogo amigo, surgia uma plataforma marítima para dar sustentação à pesquisa da “causa mortis” do jurista. Iriam verificar que no dia da ocorrência o nome do Otávio estaria registrado lá, como médico convidado para acompanhar o tratamento de paciente por ele internado, iriam verificar de que forma fora feito o pagamento da internação do paciente dele. Com o motivo revelado tudo fecharia. Teria que desaparecer. O plano B seria executado imediatamente. 
                       Vendeu o carro, quase novo, a toque de caixa e pelo primeiro valor ofertado, numa loja próxima de onde morava. Sacou todo o dinheiro aplicado, que nada tinha de exorbitante, deixou o apartamento, quitado, ao abandono e partiu para o Mato Grosso. 
                          Despediu-se apenas da irmã e dos sobrinhos deixando entrever que não se encontrariam mais. Embarcou em um voo para Porto Alegre para deixar pegadas no sentido oposto ao que iria. De lá um táxi para São Paulo, depois um ônibus para Campinas, outro voo para Cuiabá, outro, ainda para Alta Floresta. Finalmente um avião pequeno o desembarcou na pista de garimpo do Marupá, no centro da região garimpeira do Pará. Lá, um médico alucinado havia construído o único hospital no garimpo que se teve notícia e o Otávio soube disso quando, recém-divorciado, tinha ido pescar com amigos no rio Teles Pires no extremo norte do Mato Grosso. Sabia que naquelas paragens não seria investigado e que, dada a carência de profissionais, não lhe negariam emprego. Ficou por ali cerca de dois anos, enquanto durou o empreendimento que nascera fadado ao fracasso. Reuniu com isso apreciável quantia em dinheiro e também de peso. Engordou propositadamente os primeiros 40 quilos, outros tantos viriam nos próximos anos. Ninguém o reconheceria com facilidade. O jovem médico esbelto e alto estava transformado: grandes bochechas agora cobertas por espessa barba o desfiguraram. Do Marupá transferiu-se para Marataíses no Espírito Santo. Escolheu o lugar porque o nome o conquistou e porque era litoral. Hospedou-se na pousada mais simples e já antiga na ocasião. Nunca deixou que se percebesse que tinha considerável recurso financeiro, assim, quando passados vários anos o dinheiro acabou, nada no seu comportamento foi alterado, a não ser os atrasos eventuais no pagamento do aluguel do quarto e das terríveis refeições. Já velho, conseguia algum dinheirinho de comissão com um farmacêutico de Vitória que o empregava como balconista. Sabia o empregador que havia caroço naquele angu, o Otávio, mesmo disfarçando ao máximo para ser coerente com a história de trabalhos anteriores nessa função, como tinha alegado quando procurou emprego, não raro deixava evidente que o seu conhecimento ia muito além do habitual para aquela atividade. O patrão percebeu que poderia explorar o velho da forma como bem entendesse. O Otávio recebia um pouco além do que gastava na pousada, mas tinha que suportar atrasos que o patrão, sem qualquer explicação, lhe impunha.
                   O desfecho dessa história ocorreu, depois de décadas, de forma abrupta e completamente inesperada: na pousada, entre os vários hóspedes havia um baiano que recebia, vez ou outra, iguarias da sua terra. No dia em que seria encerrada a permanência do velho médico ali, naquele dia no qual a paciência da proprietária teve fim, o baiano ofereceu a todos, no almoço, uma bandeja repleta de acarajés muito apimentados. A magérrima dona da pousada, afoita, serviu-se de um e com tal voracidade que mal se percebeu qualquer mastigação. Num átimo o acarajé desapareceu. Com ele, pimenta para nenhum soteropolitano botar defeito. Muita tosse, vermelhidão na face e em todas partes visíveis do corpo, depois arroxeamento, por fim a respiração sibilante, escassa, mínima e nenhuma.
                    O Otávio gritou a plenos pulmões para que a colocassem sobre a mesa, com o braço direito, como se fosse um limpador de para brisas, jogou tudo o que havia ali, inclusive os preciosos acarajés. 
                        Revelou-se: disse que era médico, e ordenou que segurassem com força os braços e as pernas da vítima daquele choque anafilático (crise alérgica extrema, que ocasiona edema de glote e obstrução completa das vias aéreas) pediu que lhe dessem imediatamente uma faca pontiaguda, várias havia pelo chão, passou o dedo indicador pelo espaço da traqueia logo abaixo do osso hióide  (o pomo de Adão) e ali, demarcado com a unha o espaço pretendido inseriu a ponta da faca. Tirou do bolso da camisa uma caneta Bic, que vivia ali, junto com uma caderneta onde anotava o seu diário, sua única distração; tirou a carga da caneta, tudo isso numa rapidez absurda, e enfiou o tubo da caneta no orifício feito na traquéia. Um barulho alto de sucção chegou a assustar os presentes, era o ar aspirado pelos pulmões ávidos por oxigênio. A paciente em segundos retomou a cor avermelhada e a movimentar o tórax, que como um fole, expandia e voltava em movimentos muito rápidos. Estava salva.
                      Ainda assim, claro, foi levada ao Pronto-Socorro e lá instalada uma cânula apropriada em substituição à caneta. Revertido o choque anafilático com corticóides, foi suturada a incisão improvisada, antibióticos em alta dose previniriam eventual infecção. 
                           
O Otávio que se arriscou a acompanhar a paciente até ao hospital foi intimado a provar que era médico, senão seria detido por exercício ilegal da medicina. Forneceu o número do CRM, não tinha documentos, ali, consigo. No site pertinente verificou-se a razão pela qual o seu número havia sido cancelado. A polícia foi chamada e ele foi preso
                             Na declaração que deu, rapidamente, enquanto algemado caminhava escoltado para o camburão, disse que já cumpria pena há décadas, imposta por ele mesmo e as suas circunstâncias e, que agora, numa penitenciária, talvez a diferença maior viesse a ser o fato de que, com certeza, passaria a comer melhor.

                         



quarta-feira, 12 de abril de 2017

UM HOMEM E SEUS POEMAS EM TRADUÇÃO PRIMOROSA João Carlos Taveira*

UM HOMEM E SEUS POEMAS EM TRADUÇÃO PRIMOROSA


João Carlos Taveira*




(Ático Vilas-Boas)


Em todas as artes podem ser encontradas com certa facilidade duas vertentes categóricas: a de jovens gênios que, numa idade mais avançada, se apagam completamente para a criação, e a de artistas maduros que ignoram o passar do tempo e continuam criando obras de grande vigor estético talvez até mais transgressoras do que aquelas do tempo de juventude. Os exemplos são muitos. E em todos os segmentos. A título de ilustração, tome-se como exemplo apenas um nome da história da música: Giuseppe Verdi, o gênio da ópera italiana que viveu 88 anos e construiu uma das obras mais altas e coerentes de que se tem notícia, produzindo verdadeiras filigranas da música lírica até o fim da vida.

Essas abstrações me vêm à mente a propósito de um fato e de um nome singular no campo da literatura brasileira: Ático Vilas-Boas da Mota, professor, tradutor, filólogo, linguista, ensaísta, dicionarista, folclorista e poeta dos mais sérios, que tive a honra de conhecer em Brasília, na década de 1980, e o privilégio de poder privar de sua amizade fraterna nesses quase trinta anos de convivência. Pois bem, este homem culto e cordial, hoje na casa dos 80 anos, continua escrevendo e publicando com o mesmo ímpeto dos primeiros tempos. Aliás, em alguns casos, até com mais ousadia e coragem.

Depois de suas passagens por universidades brasileiras (é um dos fundadores da Universidade Federal de Goiás, em que desenvolveu praticamente todas as suas atividades literárias e científicas) e pela Universidade de Bucareste, na Romênia, tendo residido nas capitais de alguns dos principais estados brasileiros, este baiano de Macaúbas resolveu voltar às origens e fixar-se de vez no oeste da Bahia, mais precisamente na Chapada Diamantina Meridional, na bacia do Rio São Francisco. E ali, no conchego do solar da família, ao lado de dona Alzira, de fiéis assistentes e de muitos amigos, Ático Vilas-Boas vive entre livros, discos, quadros, objetos de arte, arquivos e documentos raros da cultura brasileira, dando vazão às inquietações pessoais na criação de obras cada vez mais sérias e indispensáveis à compreensão da nossa brasilidade.

O professor Ático, como é conhecido d’aquém e d’além mar, dirige com mão firme a Fundação Cultural Professor Mota, criada há mais de 30 anos para resgatar e perpetuar as ideias e iniciativas de seu pai em Macaúbas, cidade que tem sido um baluarte da baianidade e centro de apoio para diversos pesquisadores nacionais e estrangeiros. A fundação abriga biblioteca, galeria de arte, salas de pesquisas, arquivos de referência e museu.
Em 2011, o governo da Romênia, em reconhecimento aos relevantes serviços prestados àquele país de língua latina pelo autor do livro Brasil-Romênia — pontes culturais, concedeu ao intelectual Ático Vilas-Boas uma alta condecoração: Ordem Nacional Romena “Serviço dedicado” em grau de Comendador, que lhe foi entregue na Embaixada da Romênia em Brasília, em cerimônia presidida pelo embaixador Mihai Zamfir, com a presença do editor Victor Alegria, de quatro embaixadores, diversos representantes diplomáticos, jornalistas, professores universitários, artistas e escritores.

Pois bem. Hoje, o que motiva estas linhas acerca do autor de Alpondras: travessia de Bucareste e Ciganos é outro livro de poesia: Romênia, poemário telúrico, edição bilíngue português/romeno, de 2010, na tradução primorosa de Micaela Ghitescu, talvez a maior especialista na língua e na cultura brasileiras e portuguesas, que assina também o prefácio “Pontes entre dois mundos”. Os poemas da coleção, todos de temática romena, descrevem lugares, paisagens e locais muito caros a Ático Vilas-Boas, que, além de ser “o mais romeno dos brasileiros”, conhece bem não só a geografia do país amigo, como também os modos de ser, de ver e de sentir de sua gente. É um expert nas culturas que contribuíram para a formação daquele povo. E que, mesmo antes da chegada dos romanos, são tantas e das mais variadas etnias.

Romênia, poemário telúrico enfeixa criações as mais diversas dentro de um universo irrestrito: o olhar de sabedoria de um homem cuja espiritualidade transcende fronteiras físicas e culturais entre os povos. E esse olhar magnânimo percorre, no dizer de Antonio Olinto, ruas estreitas e largas avenidas com o mesmo desvelo e a mesma ternura com que vagueia pelas veredas da terra natal. É, em suma, um documento valiosíssimo de um livre-pensador que tem o coração tão grande quanto o gênio. Ático Vilas-Boas, neste livro precioso, mostra que é o poeta das causas possíveis. Mostra que, independentemente da língua, dos costumes e da formação social e política, o homem é sempre o mesmo em todos os quadrantes do planeta. A única diferença perceptível fica por conta do grau de evolução espiritual a que teve acesso e que varia de acordo com as possibilidades do meio em que está inserido. E esta lição de humanismo se circunscreve — ad infinitum — em cada poema do presente volume. Senão, vejamos na versão original:


Hospício


Visitando o Hospital n.º 9, de Bucareste


Os sonhos dos loucos
são pássaros assustados.
Ninguém achará os seus rastros
nem o bater de suas asas.

Os sonhos dos loucos
não são de ouro,
nem sequer de prata:
ferrugem que assusta,
fuligem que sufoca e mata.

Os sonhos dos loucos
são a sombra da saliva
e o cheiro dos remédios
que não curam, mas insistem.

Os sonhos dos loucos
são os passos na calçada,
cartas sem endereços,
jornada sem retorno,
gesto pela metade.

Por isso mesmo, agora,
no giz desta parede torta,
todas as palavras foram ceifadas
pela guilhotina da indiferença.

Nos mostradores dos relógios
dormem sorrisos postergados,
visitas que nunca chegam,
respostas de fantasmas.

Sonho é sonho,
neste delírio de navalhas.

Os loucos moram neste mundo
carregado de feridas abertas, em todos os lados,
sem depois, sem amanhã,
sem aviso prévio, sem recado,
sem o anúncio da felicidade
nem de sua chegada.

Só o abraço de urtigas,
pesadelo que nunca se desfaz…

Após a leitura desse poema, a vontade que se tem é de transcrever outros e mais outros. Mas a tentação é contida. Afinal, os espaços de publicação estão cada vez mais exíguos e não permitem veleidades nem excessos por parte de ninguém. Dito isso, voltemos ao livro e seu conteúdo concentrado.

A presente edição saiu em Bucareste, em 2010, pela Editura Fundatiei Culturale Memoria e traz na quarta-capa uma curiosidade: a Baía de Guanabara, sobreposta a um ramo amarelo em que um beija-flor passeia sua majestosa mestria de voo, é contemplada pelo olhar sempiterno do Cristo Redentor do alto do Corcovado. Mas por que o Cristo Redentor na capa de um livro traduzido para o romeno? É que a cabeça do Cristo foi esculpida por um romeno chamado Gheorghe Leonida (1892-1942), que trabalhou no atelier do escultor francês de origem polonesa Paul Landowski (1875-1961), responsável pela execução do trabalho que foi doado ao Brasil pelo governo da França. Essa informação preciosa de Ático Vilas-Boas encontra-se, entre outras, no já citado livro Brasil-Romênia — pontes culturais, publicado pela Thesaurus Editora também no ano passado e cuja segunda edição, revista e ampliada, deverá sair em breve.

Completam a bela edição ilustrada um índice, notícias biobibliográficas do autor e da tradutora e um elucidário, com informações precisas sobre certos nomes próprios, vocábulos e expressões romenos.

O romancista Daniel Barros e o Poeta João Carlos Taveira visitam o Prof.º Ático Vilas-Boas da Mota um dos fundadores da UFG -Universidade Federal de Goiás.





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*João Carlos Taveira é poeta e crítico literário, com vários livros publicados, entre os quais A Arquitetura Verbal de Nilto Maciel (2012) e Sonetos de Bolso, Antologia Poética (2013), em parceria com Jarbas Junior, e O Prisioneiro (2014), edição comemorativa de 30 anos, com capa de Patrícia Ferreira.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

O Extraordinário Domínio Público - Maurício R. B. Campos

O Extraordinário Domínio Público


Se você não conhece a HQ A Liga Extraordinária, muito provavelmente conhece sua adaptação cinematográfica capitaneada por Sean Connery. O grande trunfo dessa obra é Alan Moore. O cara é meio pirado, mas é tremendamente talentoso, e um dos melhores da arte sequencial. Mas além disso, a liga traz como diferencial só utilizar personagens que estão em domínio público.
O que isso quer dizer?

Os direitos autorais (ou direitos de autor) duram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao falecimento do autor. Além das obras em que o prazo de proteção aos direitos excedeu, pertencem ao domínio público também: as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores; as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal para os conhecimentos étnicos e tradicionais. (Wikipedia).
A ideia de Alan Moore era criar uma Liga da Justiça da Era Vitoriana, juntando Mina Murray (de Drácula) Capitão Nemo (de Vinte Mil Léguas Submarinas), Allan Quatermain, Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Hawley Griffin, (de o homem invisível) e o Professor Moriarty, arqui-inimigo de Sherlock Holmes.
Mas isso só foi possível graças às regras do direito autoral. Graças a essa regra 2015 foi o ano que O Pequeno Príncipe entrou em domínio público inundando as livrarias com lançamentos do livro preferido de nove entre cada dez misses. A abundância de um determinado título nas lojas é uma das principais vantagens dos defensores da legislação do domínio público. Outro motivo é que esse modelo incentiva a criação de novos trabalhos.
E como ficam as grandes corporações no meio disso tudo? Tomemos o Mickey Mouse por exemplo: o camundongo mais famoso do mundo é mais conhecido do que Papai Noel e a revista Forbes estimou seu valor em U$ 5,8 bilhões de dólares por ano, tornando-se o personagem ficcional mais caro do mundo. Já imaginou perder essa galinha dos ovos de ouro?
Nem a Disney. Desde a criação do personagem em 1928, todas as vezes que houve uma ameaça de que o domínio público finalmente chegaria, a corporação e seu forte lobby no congresso americano estendiam o prazo (extended act), que depois de três períodos adicionais está programado para vencer em 2023. Essas alterações na legislação norte-americana ficaram conhecidas como o efeito Mickey.
Um cartunista chamado Dan O’Neil contestou a primeira extensão lançando uma série de cartuns nos quais o Mickey era visto em situações subversivas. Recebeu uma multa de 200 mil dólares assim que o extended act foi liberado.
Embora defenda suas criações com unhas e dentes, a Disney vem arrebanhando fortunas utilizando personagens e histórias em domínio público, segundo dados da revista Forbes.

Nada melhor do que poder fazer suas próprias regras. Em uma sentença de 1979 a Suprema Corte Norte-Americana decidiu que se uma marca registrada estiver associada indistintamente a um personagem fictício, este estará protegido mesmo que em domínio público. Essa sentença
blindou a corporação, garantindo a proteção legal para sua criação mais famosa por período indeterminado. 

sábado, 8 de abril de 2017

A Partitura e o Xadrez - Raick Tavares

   A Partitura e o Xadrez


             Eu caminhava mais que depressa. Olhava no meu relógio para ver o quanto estava atrasado.

             Virei à esquina da minha casa e virei a próxima até chegar à rodoviária.  A minha sorte é que eu morava um quarteirão de onde Sergiane estava.
             
A avistei sentada no banco. Ela abriu um sorriso e arrumou os óculos de armação vermelhos, eu fui com os braços abertos.  Senti seu peito sobre os meus e seus bravos se fechando em torno de mim. Eu estava precisando daquele abraço. Meu dia foi uma merda.
             — Que saudade eu estava de você — ela disse.
             — Eu também estava com saudades.
             — Como foi a aula de inglês hoje perguntei?
             — Um pouco chata   — ela abriu um sorriso o que fez surgir uma covinha em seus rostos.
             Sergiane passou mão direita em seu cabelo preto anelado, pegou a bolça e o cadernos que estavam no banco e começamos a ir em direção a minha casa.
             O tempo estava fechado. Era um fim de tarde muito bonito com nuvens carregadas e um nublado bem cinzento.
             Chegamos a minha casa em menos de quatro minutos. Ela colocou os seus cadernos e a bolça em meu sofá. A primeira coisa que ela sempre fazia era admirar a minha estante de livro, que eu fazia questão de deixar na sala de estar. 
             — Eu não gosto do jeito que você arruma seus livros — Sergiane preferiu mudar um livro de lugar.
             Abri um sorriso e não disse nada. Deixei ela bagunçar os meus livros e entrei na cozinha.
             Voltei com pacote de biscoito (daquelas rosquinhas bem tostadinhas e crocantes que eu e ela, tínhamos uma queda) para acompanhar, duas xicaras com chá doce.
             — Uai, por que não me chamou pra te ajuda   — ela disse apoiando as mãos na cintura.
             — Não precisava.
             — Hum sei...
             
Coloquei o pacote de biscoito em cima do tape vermelho, com listra preta da minha minúscula sala de estar. Entreguei a ela sua xicara.
             — E aí, quando vai me ensinar o xadrez?  — Ela indagou olhando para um tabuleiro encima de um pufe.
             — Quando você me ensinar à partitura — retruquei bebericando do chá doce.
             — Podemos combinar para próxima quarta-feira, que eu vier para João Pinheiro.
             — Combinado   — responde erguendo minha xícara.
             Nossa amizade era como um moinho movia a força do vento.  Podemos viver distantes, mas o sentimento e o carinho são os mesmos até nos dias de hoje... 


Raick Tavares nasceu em 1992 em João Pinheiro - MG. Radialista há dez anos, palestrante, colunista e idealizador do projeto podcast Um Livro C/ Café.  Atualmente mora na cidade de Paracatu – MG, com a esposa. 

quinta-feira, 6 de abril de 2017

LANÇAMENTO - Meu Deus, Mas Que Cidade Linda, livro de Rodolfo Melo - Daniel Barros

O conto difere da novela ou do romance por ser mais curto, tendo uma estrutura fechada e desenvolvendo uma história com apenas um ápice. Entretanto, como toda obra ficcional, cria um mundo de seres, de fantasias ou eventos. No conto também encontramos narrador, enredo, personagens e opiniões. Sendo o conto o gênero curto da prosa, não temos margens para erros. Em um romance podemos pular partes chatas, ou lê-las com menos atenção; isto não é permitido no conto, ou gostamos ou não do clímax único.
  Há os que dizem que os contistas estão perdidos, em decorrência do favorecimento ao romance em oposição à prosa curta. Discordo, pois temos entre nós escritores contistas fenomenais, tais como: Dalton Trevisan, Ivan Marinho, Rubem Fonseca, Paulo Souza, Julio Cortázar, E. Hemingway, Karen Blixen – com seu esplêndido A festa de Babette –, Leon Tolstói, Machado de Assis e o moçambicano Mia Couto, entre inúmeros autores que poderia aqui citar, que não permitem que os contos figurem em segundo plano. 
Rodolfo Melo
Com Meu Deus, Mas Que Cidade Linda de Rodolfo Melo, fico ainda mais tranquilo com o fato de que os contistas preservaram o conto em um lugar de destaque na prosa de ficção. Encontramos neste livro várias características que me chamaram a atenção; escrito às vezes na primeira pessoa, ora na terceira, e até mesmo havendo alteração no gênero do narrador, o que é de extrema complexidade. Diferente dos romances, os contos têm que condensar o enredo e ao mesmo tempo tudo dizer. Rodolfo demonstra um profundo conhecimento sobre sua aldeia (a Capital da república), o que me remete à célebre frase de Tolstói: “Se queres ser universal escreve sobre a tua aldeia”. Melo consegue, com mestria, abordar os problemas sociais vividos por seus personagens, que, diga-se de passagem, são muito bem construídos e me chamaram a atenção pela coerência nas características psicológicas de cada um deles, desde Jonas em Um crime no condomínio, onde as suspeitas sempre recaem sobre os mais fracos, verdadeira realidade preconceituosa de nossa sociedade, Josué em A história por trás de uma estatística, onde, como policial, parei para refletir se é possível que isso aconteça aqui? Ou é mais uma estória escrita por quem está de fora?
Assim, deixo para você, caro leitor, julgar Caldeirão do Diabo, um retrato fidedigno dos subúrbios de Brasília. Ainda dentro deste enfoque social na construção dos personagens, podemos destacar Um lobo em pele de cordeiro, um conto Kafkiano, onde o personagem se transforma para que possamos compreender o preconceito visto pelo oposto.  Outra característica marcante é a tragédia e os finais enigmáticos, tal qual ocorre em Machado de Assis e Guy de Maupassant, em que a construção da narrativa conduz para o final surpreendente. 
Não me restam dúvidas de que, da mesma forma como foi para mim a degustação de cada página deste belo livro, será também para você, caro leitor, que guardará na memória as bem construídas narrativas feitas por Rodolfo Melo, uma vez que este volume terá lugar de destaque em nossas bibliotecas. 
Boa leitura.
Brasília, 27 de outubro de 2016.
Daniel Barros 
Escritor    
Lançamento: Sexta, 7 de abril às 19:30 - 23:00, Galeria Olho De Águia CNF, 72125-525 Brasília