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terça-feira, 28 de março de 2017

Parque Nacional do Xingu - Kuarup: alma indígena - Ana Suely

Parque Nacional do Xingu - Kuarup: alma indígena 

Kuarup
Em julho de 2003 tive a oportunidade de conhecer o Parque Nacional do Xingu e assistir ao Kuarup, uma reverência aos mortos ilustres. Naquela oportunidade a homenagem era dedicada ao sertanista Orlando Villas Boas, grande guerreiro e defensor da causa indígena. 

Orlando Villas-boas
A predominância dos brancos foi grande e evidenciou fortemente o domínio do homem branco sobre o índio. Presenciei essa coisa ainda tão viva em nossas cultura, através de atitudes e concepções. Traduzido no nível de intromissão, no sentimento de domínio, de superioridade; literalmente falando, de falta de respeito. 

Sinto não ter tido um contato genuinamente indígena, o que, com certeza, me passaria um mais intenso sentimento de amor, afeto, natureza e compreensão daquela gente esquecida pela gente "civilizada". 

Mesmo com a intervenção constante do branco busquei do fundo da alma perceber, sentir e vivenciar o SER ÍNDIO, por meio de gestos, costumes, olhares e da expressão que tanto se faz presente e impressiona! 


Não quero registrar apenas indignação pelo domínio do homem branco sob o índio, certamente obcecado pela sede de poder (vi muito com que me indignar, sim...), mas desde que iniciei meus escritos, seja em forma de poesia, crônica ou qualquer tipo de redação, fiz uma jura a mim mesma; relatar o protesto sim, a evocação, o grito de insatisfação, de alerta, mas, procurar evidenciar o belo, o etéreo, o sagrado; enfim, a beleza da natureza expressa seja de que forma se apresente. 

Naquela gente, que nos lembra quem somos, nossa origem, que temos família, faz-nos lembrar ainda que fomos feitos para viver em harmonia. Senti-me pequenina diante de suas grandezas, desde o gesto infantil que já perdemos há muito tempo, de recordar nossas origens. 

Fiquei emocionada quando Killir, uma indiazinha meiga, companheira, linda... perguntou-me o nome dos meus pais (já não os tenho mais em vida), há quanto tempo alguém na minha vida teve o interesse de saber o nome deles... senti que ainda há quem dê valor ao espírito de família, que se importe com os outros. 

A companhia daquela indiazinha mexeu muito comigo; perplexa por nossos atos, atitudes, comportamento, modelos, costumes, exemplos e, de repente, fiz uma leitura de que não tinha o que ensinar, e sim muito a aprender com o povo indígena. Eles se comportam de forma feliz, simples, inocente, natural e cativante, exemplo para nós. 

O viver, o simplesmente ser, em tudo que lhes diz respeito. A harmonia nos gestos, nos traços da cabana, nas cores exóticas, no preparo dos alimentos, no olhar e na forma de se relacionarem. A conversa entre os familiares, ao deitar, ao acordar, soa como um compromisso à própria vida, a própria natureza harmônica e liberal. A naturalidade de forma expressiva do ser, do fazer e do respeitar. 

cacique Aritana
O coração do cacique Aritana, ilustre líder indígena, enaltece a imensa maloca com seu aspecto soberano – simples, mas tão expressivo quanto seu olhar de sabedoria – seu dom nato de saber ouvir e acolher quem está em seus “braços”, impressionante, louvável e porque não dizer, apaixonante! Seu olhar seguro, determinado, firme e grandioso carrega valores e transmite aulas vivas de sabedoria e aprendizagem de vida. 

A submissão das mulheres lhes garante o direito de companheiras, protegidas e também guerreiras, pois cabe a cada uma o seu espaço, o seu trabalho e determinação. 

O céu do Xingu, imenso chão de estrelas, reluzindo sobre os seres, refletindo brilho, piscando incansavelmente, fez-me acreditar que existe céu na terra, como um banho de estrelas caindo em forma de véu, envolto numa cortina imensa, à qual apenas os abençoados por natureza têm acesso. 

Senti falta da chuva, mas contentei-me e entendi sua ausência como um sinal de respeito que naquele momento eu interpretaria sua presença como uma lágrima dos céus, da mãe natureza em confronto com a maldade humana e preferi assim... 

Os rios, carregando a lembrança de sonhos de criança, de espaço, de paz e esperança, ainda que sofridos, desgastados e modificados pelo assoreamento oferecem o espírito de liberdade e me permitiram viver a sensação de céu, do divino, da natureza que eu só conhecia nos sonhos de criança. 

De quebra nos proporcionou um espetáculo maravilhoso! A dança das gaivotas, acompanhando-nos num sob e desce, sob o barco, que ao entrecortar de asas, em harmonia perfeita, cantavam, revoavam e num compasso exuberante deixaram-nos (uma poetisa, um artista plástico e um jornalista) fascinados. Subiam e desciam aos céus apresentando um espetáculo sem hora marcada, sem ingresso e sem ensaios. O único passaporte exigido, foi a coragem de desafiar os costumes, o comodismo do mundo evoluído e o sedentarismo largados aqui na “sociedade civilizada”. Ecoavam aos céus, às águas, aos seres um grito de liberdade, de viver e nos transmitiram uma mensagem de que ainda é possível sermos felizes. 

Mais que uma viagem, foi um sonho, um reencontro, uma volta ao útero materno, um retorno à infância, um repensar de viver, de ser, vez que vivemos fincados na evolução, na perda de valores humanos em nome do avanço tecnológico e em meio as edificantes construções. 

Um encontro de vida, uma lição de amor, de bondade e sabedoria por uma gente a quem tanto devemos, e que hoje num gesto sublime de magnitude, resiste, ainda que com toda a intromissão do homem branco. 

Eles perduram, guerreiros em plenitude. Gente com quem tanto precisamos aprender, reaprender a nos tornamos mais gente! 
Ana Suely
Ana Suely 2003.
Crônica premiada com ela pela no Projeto Delicatta 2008, em terceiro lugar,  categoria crônicas em 2008.




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