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terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

BIRUTA - Paulo Tadeu Poli


Biruta
BIRUTA 
Mecanismo constituído por um cone de tecido acoplado a um aro de metal e utilizado em aeródromos para indicar a direção do vento. 



                  A um só tempo estridente e seco o som do tiro repercutiu os ecos que se espraiaram sobre o lago artificial. O pato que sobrevoava aquelas águas plácidas por certo ouvira aquele barulho destoante, sem supor que lhe dizia respeito, até que vários chumbos esféricos, ao transfixá-lo, o tornassem ciente de que o ardido espocar era a ele endereçado.
               

Naquele alvorecer de domingo o serviçal nordestino que apreciou o tiro certeiro, disparado pelo engenheiro, recebeu a ordem peremptória e correu em direção ao lago, sem atentar para o fato de que a folga o desobrigava de atender o chefe, ou sequer, que precisaria saber nadar para cumprir aquela missão de resgatar o pato. Ambos, o nordestino e o pato, sucumbiram entre as galhadas submersas.
                  No escritório da Porto Estrela, empresa subsidiária da Paranapanema do empresário Elieser Batista, pai do hoje detento Eike Batista, em Paranaíta, MT, soou o alarme do rádio anunciando uma chamada. O diálogo entre diretores da empresa, um da base na cidade e outro da remota mina de ouro conhecida por Planeta - distante quarenta minutos de voo em pequenos aviões - foi lacônico e claro: havia urgência em se retirar  “o acidentado” do garimpo, embalsamar o cadáver e transportá-lo para Picos no Piauí o mais rápido possível.
                  Esbaforido um funcionário da mineradora me trouxe o recado.
                  Eu tinha dois contratos com a empresa Porto Estrela: o da assistência médica, através do hospital que possuía na cidade, e o de transporte aéreo em decorrência dos quatro pequenos aviões de outra empresa da qual eu era sócio. Assim, aquele tiro que descortinou o domingo lá na mina no Planeta, me atingiu simultaneamente nas duas funções: eu teria que embalsamar e depois transportar o corpo do humilde serviçal até à presença dos seus pais, mulher e filhos, lá no Piauí.
                  Os murmurinhos nos bastidores dos dois escritórios, difundidos via rádio ou telefone, já que Internet não existia, repercutiu em minutos para outras esferas da grande empresa e, de imediato, causou preocupação na matriz em São Paulo. Havia um grande contingente de homens, que resgatados pela empresa em suas origens, buscavam em novos horizontes a redenção do perene sofrimento imposto pela imutável pobreza nos rincões do nordeste. Assim, se deixavam levar pelo "canto da sereia" abandonando, por tempo incerto, mulher e filhos.
                 
Ocorria, em muito maior volume, a emigração espontânea como a da Serra Pelada onde milhares de forasteiros, por conta própria, partiam para aquele local, cuja fama, ganhou o mundo. Outras tantas regiões garimpeiras do norte do Mato Grosso e Sul do Pará, naqueles idos da década de 1980, acolheram outras milhares de pessoas que, na maioria, desempenhavam atividades das mais variadas. Aquele episódio, que culminou na morte do humilde e prestativo serviçal, foi presenciado por vários outros nordestinos e fez aguçar o sentimento de crônica humilhação que cada qual resguardava. O mínimo, portanto, que a imponente empresa poderia fazer era o de dar ao falecido a pompa de um féretro heróico. A assistência à família da vítima teria que ser proporcionada com a maior brevidade. Isso, ao menos, abrandaria a inquietação.
                  Designei um piloto, com um monomotor, para resgatar o morto. No hospital todos os preparativos necessários para o embalsamamento. 
                  Eviscerado o cadáver, desprovendo-o primeiro dos pulmões e coração, visando esvaziar o tórax e, na sequência, as vísceras do trato digestivo; transferi para as cavidades torácica e abdominal grande quantidade de algodão, encharcado em formol. Uma sutura contínua com fio inabsorvível do apêndice xifóide à sínfise púbica encerrou o procedimento.
Aztec
                  Os bancos dos passageiros do bimotor Piper Aztec foram retirados, para conquistar espaço suficiente, para o caixão.
                  Tão implacável quanto a morte é o tempo. O mesmo tempo que transforma a inexistência em vida e o viver finito. Ele, o tempo, me pressionava sobremaneira nesse dia.
                  O pediatra do meu hospital tinha em mãos passagem comprada para o Sul, destino de todos nós nas férias. Foi difícil convencê-lo a me acompanhar. Poucas horas depois ele diria que o meu poder de convencimento era quase letal.
                  A empresa tinha designado para representá-la o Cido. Corruptela de Aparecido. Possuía história peculiar esse rapaz, daí viria um novo apelido a encompridar o original: Falecido. Isso porque, com muita frequência, era abordado para que contasse a razão pela qual mudara para o Mato Grosso. Como os apelos eram sempre iguais: conte Cido, fale Cido, fale. Assim ficou: Falecido. Era natural do Uruguai, filho de mãe brasileira que há pouco tempo havia emigrado para o país vizinho visando exercer atividade profissional nem de todo explicitada pelo Falecido. O pai, esse sim, Uruguaio, viúvo, que instigado a conhecer o Brasil pela nova esposa e tendo visto neste país grandes perspectivas de investimento, resolveu converter o seu considerável patrimônio em dinheiro para aplicar em negócio rentável no Rio Grande do Sul. Isso ocorreu logo após o nascimento do Falecido. Portanto, o mancebo não chegou a conhecer a sua terra natal. Assim, tornou-se, o pai, considerável atacadista, um dos maiores fornecedores dos supermercados da região. A mãe, vocacionada, como se antevia, apesar da confortável situação econômica propiciada pelo marido fugiu com um viajante, vendedor habitual daquele comércio. O uruguaio entrou em depressão até encontrar outra sirigaita, essa muito mais ambiciosa. Influenciado por ela passou a jogar. Não cartas, ou em cassinos, mas em loterias. Comprava o que parecia jornais em bilhetes nas lotéricas. Investia nisso todo o lucro do seu próspero negócio. Antes que comprometesse a saúde financeira da sua empresa, porém, deu-se bem. De tanto jogar ganhou. Milhões. Vendeu a empresa que somou ao vultoso prêmio, com esse montante adquiriu um grande frigorífico no Mato Grosso. A madrasta do Falecido pediu o divórcio e levou consigo o capital de giro da nova empresa. O Uruguaio, além do mais, era neófito no ramo. Quebrou, rapidinho, e cometeu suicídio. O Falecido, o filho, Falecido com maiúscula, ficou no desamparo total. O Pai, no breve período do frigorífico, conhecera o Elieser Batista, daí, o filho, ter conseguido o emprego na Porto Estrela.
 Ao embarcarmos no avião, o pediatra e eu, tínhamos, portanto, como acompanhantes dois falecidos. O filho do uruguaio, Falecido com inicial maiúscula e o falecido Agripino, fazendo jus ao seu pobre destino, com minúscula.
Essa história real, diga-se, tem décadas. Mas, já naquela época, havia o pôr do sol e havia os burocratas, os carimbos e os relógios, o bom senso e o "non sense." Naquela época não havia, como ainda não há, a humildade dos poderosos, como deixou patente a altivez do engenheiro, não havia o amor próprio dos humildes, como fez ver o impulso solidário e fatal do Agripino e não havia o GPS que hoje ensina até o caminho da padaria.
 O nosso destino naquela tarde era Conceição do Araguaia para pernoitar e no dia seguinte Picos no Piauí. Teria que voar com a rusticidade tecnológica da ocasião: com um olho na bússola e outro alternando o solo e o mapa.
 A última carimbada se deu por volta das quinze e trinta, papelada do traslado do defunto pronta decolamos às quinze e cinquenta. Os “carimbeiros” venceram a lógica das horas e a do sol, que acabrunhado, pôs-se a se pôr curvando-se à inevitabilidade dos fusos horários.
 Calculava chegar em Conceição nos últimos minutos do entardecer. Nariz do bimotor para cima nivelei aos quatorze mil e quinhentos pés. Não demorou avistei a Serra do Cachimbo à minha esquerda. Ali, naquela ocasião, o governo militar de plantão cavocava um enorme buraco para testar uma eventual bomba atômica. Projeto que simbolizou a bravata beligerante da ditadura das armas. Cerca de uma década após, outra fanfarronice foi simbolizada por uma pá de vitrine, toda lustrosa, lançando terra na imensa cratera para informar que o que nunca existiu não existiria mais. As mãos do então presidente Fernando Collor de Melo, bizarramente, seguravam aquela pá. 
O Falecido, na falta de poltronas, viaja sentado sobre o caixão do Agripino. Como representante da empresa lhe caberia lugar mais nobre. Entretanto, declinou dessa prerrogativa em benefício do pediatra. Poderia ser explicada essa gentileza apenas pelo cavalheirismo; mas não, havia algo a mais nessa cordialidade. Naquela região em que habitávamos, no extremo norte do Mato Grosso e naquela época, deu-se um fenômeno migratório pouco usual: embaralhavam-se agricultores e garimpeiros, empresários e fazendeiros, comerciantes e funcionários de empresas, de modo a não se estabelecer distinção social aparente na rotina do dia a dia. O Enio, ao surgir por aquelas bandas identificou-se, nas ocasiões em que era interpelado, como fazendeiro. Ia de um lugar para outro buscando informações para a compra de uma propriedade agrícola. Lá estava na condição de investidor, designado pelo seu pai e irmãos que, juntos, possuíam vários sítios no interior do Paraná. Foi se tornando conhecido entre os comerciantes, era muito comunicativo e brincalhão. Já fazia mais de mês que aportara por lá, quando numa festividade no clube do centro de tradições gaúchas, houve um episódio revelador: uma menina de uns dez anos, repentinamente, começou a ter espasmos musculares que para leigos era tal qual uma crise epilética. De imediato várias pessoas cercaram a criança e estabeleceu-se a balbúrdia. Nessa confusão o Enio, que aceitara o convite para a festa, aproximou-se e perguntou para a mãe, que chorava em desespero, se havia sido ministrado algum medicamento à menina. A mãe comentou, sem lhe dar muita atenção, que tinha dado Plasil porque ela vinha vomitando há dois dias. Enio perguntou a dosagem, ela informou. Ele fez o diagnóstico em alto e bom som: síndrome extrapiramidal. Chegaram ao hospital em instantes, se apresentou e eu permiti que assumisse o caso. Resolveu a crise com maestria. Foi quando o conheci e foi quando todos ficaram sabendo que o despojado comprador de terras era médico e pediatra. Algum tempo depois, resolveu se estabelecer por ali e trabalhar comigo. A criança era filha da namorada do Falecido, que estava junto naquele episódio.
 Agora estava ali, o competente pediatra, sentado ao meu lado na poltrona que seria do copiloto, caso houvesse um. Os motores ronronavam em uníssono. Naquela altitude não havia turbulências. Céu de brigadeiro. 
O Enio leva o dedo indicador esquerdo ao mapa que ficava aberto em meu colo e, fazendo um movimento em leque, me pergunta: estamos voando de Oeste para Leste, certo? Assenti balançando a cabeça. Sendo assim, não teríamos diferença de fuso horário no nosso destino? Conceição do Araguaia não irá escurecer antes de Alta Floresta de onde partimos? Percebi o meu próprio empalidecimento. Todo o meu estoque de adrenalina foi lançado, num átimo, na circulação. Um leigo, o Enio, atentou para um fato decisivo sobre o qual eu, o piloto, não havia pensado.
Na proa, cinco mil metros abaixo, cruzava a nossa rota com todo o seu esplendor, o rio Xingu. Sua aparição e as curvas que o mapa no meu colo grafava indicavam que estávamos na rota correta e no tempo previsto. Não fosse o meu erro, tão elementar, pousaríamos em Conceição no limite do pôr do sol. O Enio voltou a perguntar, imaginando que eu não tivesse ouvido em decorrência do barulho dos motores. Disse-lhe que, de fato, isso ocorreria, que a escuridão iria inundar o nosso destino antes que o alcançássemos. Que eu não avaliara esse fato. Que havia cometido um erro crasso e que, finalmente, estávamos em uma grande emergência.
 A selva amazônica como um tapete verde lá embaixo. Vez ou outra um desmatamento indicava a presença destruidora do homem. O Falecido foi informado por mim da nossa situação. Caiu o silêncio, como um véu de chumbo. Os motores, alheios à fatalidade que se anunciava, mantiveram o ronco monótono, agora parecendo mais encorpado.
Meus dois filhos eram crianças e a minha esposa, companheira desde a nossa adolescência, ainda nos dias atuais bela e formosa, aguardavam apreensivos pelo nosso retorno. Dentre os tripulantes apenas eu deixaria órfãos. O Agripino já havia se antecipado e tanto o Enio quanto o Falecido eram solteiros. Minha incompetência geraria imensos problemas para a minha família. Já dava como certo que não sobreviveríamos. O pato abatido pelo engenheiro seria pago por nós. O Agripino teria sido, apenas, o sinal da dívida. 
Paulo Tadeu Poli
Conclui, após refletir espremendo cada conhecimento adquirido na minha já considerável experiência como piloto de garimpo; que não deveria insistir em encontrar Conceição do Araguaia. Que deveria, enquanto havia alguma visibilidade, tentar pousar em alguma área desmatada que encontrasse no percurso. Com a escuridão seria praticamente impossível localizar a iluminação de uma cidade pequena mergulhada entre morro na selva amazônica. Comuniquei aos meus acompanhantes que tentaríamos um pouso forçado, de barriga - com os trens de pouso recolhidos - para encurtar o trajeto percorrido após tocar no solo, minimizando a chance de alteração da trajetória. Pedi para que me ajudassem a encontrar algum desmatamento. 
Nariz do Aztec para baixo, diminuição imediata da potência visando perder a excessiva altitude, para aquelas condições, e, olhando em varredura para o solo na busca desesperada por algum espaço, menos denso da mata, naquele tapete verde de selva. 
Eis que surge, e eu mesmo avistei, uma grande área desmatada, discretamente à esquerda da rota original. Ajustei a proa e afundei o nariz do avião que passou a voar a quase quatrocentos quilômetros por hora. Ao nos aproximarmos daquele desmatamento, já voando bem baixo, notei uma estradinha característica de fazendas, muito tortuosa entre vários troncos de árvores derrubadas, muitos deles enormes, típicos das imensas castanheiras que dominam aquela vegetação. Orientei aos dois companheiros que, quando eu gritasse, eles deveriam enfiar as cabeças entre as pernas e protegê-las com as mãos. Fui gradualmente acionando os flapes, eles permitiriam que eu mantivesse o avião em voo com o mínimo de velocidade, cerca de 170 km/h, com a qual tocaríamos o solo.
Circunvolucionando Edição do autor
 Sobrevoando a precária estrada, aguardava por um trecho minimamente reto, para jogar o avião no chão. Avistei uma semirreta logo a frente, muito curta, mas teria que ser ali, a visibilidade já estava muito comprometida, escurecia com rapidez incrível. A curva que se acentuava ao encerrar a tímida reta era à direita, eu já estava com os pulmões insuflados, prestes para gritar, quando levantei os olhos e avistei logo após a dita curva uma biruta. Estava inerte, desinflada, rente ao palanque que a fixava. Àquela hora com os pássaros se recolhendo, acossados pelo lusco-fusco, não havia vento algum, por isso o desânimo da biruta. Nenhuma imagem ao longo da minha já longa vida impregnou tanto a minha memória.
 Fiz urrar os motores empurrando com vigor as manetes de potência, o nariz do Aztec elevou-se e avistamos uma maravilhosa pista de grama. Pousamos suavemente, com os trens abaixados e travados, na fazenda Volksvagem à margem do rio Cristalino, no Pará.



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