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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Mesa Posta Pratos Frios - CHAME POR SEGURANÇA - pelo Profº Doutor Marcos Fabrício Lopes da Silva*

 CHAME POR SEGURANÇA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


O primeiro parágrafo me disse para continuar na leitura de Mesa posta pratos frios (2023), livro de Daniel Barros:

https://www.editorapenalux.com.br/catalogo-titulo/mesa-posta-pratos-frios
“Uma sombra de dor e tristeza encobria a beleza do entardecer no Planalto Central. A honra e a coragem de um homem o levaram àquele triste momento. Os poderosos deram seu recado às pessoas que buscam, na lei, a Justiça. Interpretações nada imparciais colocaram em liberdade um criminoso contumaz. A Justiça tem venda nos olhos, mas tem, igualmente, as mãos livres para desvendar-se quando bem queira, sobretudo quando os réus são de sua própria casta”. 

Com o auxílio do psicólogo Marco Antônio de Azevedo (PUC-MG), podemos dizer que a narrativa de Daniel Barros nos leva a reconhecer o mundo do crime através de duas perspectivas: a culturalista e a racionalista. A respeito, o autor do estudo Concepções sobre criminalidade e modelos de policiamento descreve: “da primeira derivam políticas públicas destinadas a reduzir a criminalidade através de uma atuação sobre a desorganização social. Na segunda privilegia-se uma estratégia segundo a qual o principal papel do Estado é dissuadir o criminoso da prática delituosa” (VIII Colóquio Internacional de Sociologia Clínica e Psicossociologia, UFMG, julho de 2001). A obra de Daniel Barros ultrapassa o senso comum sobre o universo criminal e os modelos de policiamento, valorizando o difícil debate sobre segurança pública e seu papel na promoção da cidadania. Na trama em destaque, o fazer policial se desdobra complexo e bem distante do paradigma simplório e maniqueísta que divide o mundo em mocinhos e bandidos.

Existem considerações mais pragmáticas que deveriam ser levadas em consideração. O mundo da investigação policial, sob a ótica literária de Daniel Barros, torna-se fator de preocupação e estudo, quer no âmbito da prevenção e repressão aos crimes, quer pelos desdobramentos que suas ações são capazes de provocar. Dentro deste contexto, de violência e risco, como falar do policial sem se remeter à farda que o veste? Como desvinculá-lo da imagem repetidamente explorada, seja ela boa ou ruim, de herói ou de vilão? Como olhar o indivíduo, humano, sem julgá-lo por atos de alguns (poucos ou muitos?), sem recriminá-lo, sem dar a chance de acolhê-lo em seus dilemas? Assim como aquele que pede ajuda, o policial também chora diante do infortúnio, também briga, também grita e também se indigna com tudo o que tira a esperança na dignidade humana. Trata-se de temática bastante instigante, pois nos evidencia o quanto o trabalho do policial depende intimamente, muito mais do que de sua força ou coragem, de condições psicológicas que lhe garantam certo bem-estar diante de tão extenuante tarefa.


Daniel Barros.
Foto: Gabriel Marinho
Daniel Barros dedica atenção esmerada aos policiais que arriscam a vida para cumprir seu dever, apesar do salário baixo, apesar da imagem deteriorada da corporação, a despeito da vergonha que os companheiros corruptos lhes causam e da profunda miséria humana que lhes cavam um buraco na alma. Mesa posta pratos frios nos lembra sobre o papel que se espera da polícia na preservação da ordem pública, incluindo a incolumidade das pessoas e do patrimônio, como também, e principalmente, assegurando e promovendo o respeito à dignidade da pessoa humana. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 144, defende tais princípios e nos faz acreditar que os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, ao contrário do dito comum, não embaraçam as ações policiais, mas as norteiam e as legitimam. 

Em razão da relevante função que as polícias cumprem, a busca da segurança pública e a busca da cidadania plena deverão constituir um projeto solidário do poder público e da sociedade. Para tanto, como salienta o livro de Daniel Barros, convém reconhecer a complexidade, a heterogeneidade, a diversidade e a incerteza que afetam diretamente o desempenho dos serviços policiais. Não à toa, a insegurança que atravessa o Brasil é sentida por todos os ramos da sociedade, motivo este que vem refreando o país em seu desenvolvimento econômico e cultural. Apesar dos pesares, ainda se vê na justiça o último refúgio de um ideal democrático desencantado (Antoine Garapon, O guardador de promessas: justiça e democracia, 1998).

As polícias representam o início do enfrentamento aos atos ilícitos. Em seguida, estão o Ministério Público e o Poder Judiciário. O Poder Legislativo também exerce o seu papel, pois tem condições de criar leis, sugerir ações das instituições e promover o debate sobre a violência. Destacando a natureza multidimensional do trabalho policial, Mesa posta pratos frios cirurgicamente destaca: as deficiências das atividades de investigação e inteligência policial estão entre os principais problemas do sistema de justiça criminal. Em momento quente da obra, a discussão entre o investigador Ximenes e o delegado Guilherme Lourenço gira em torno da distância entre a criminalidade detectada e a investigada: “— Essa sua pressa é que fode tudo – disse Ximenes. — Investigação requer paciência e observação de detalhes. Com afobação não enxergamos as nuances das coisas. Já perdemos muito tempo nesse inquérito e tempo é ouro num crime de homicídio”


Em outras palavras, a investigação policial consiste em um trabalho que deve ser efetuado de forma eficiente e eficaz para que haja consequências efetivas em termos da garantia de segurança pública. Mas não são apenas estes aspectos técnicos que estão em jogo. No enfrentamento da violência, tanto dentro como fora do corpo policial, os fundamentos éticos devem orientar a melhor conduta. Conforme expressa o ideal de Ximenes, no epílogo de Mesa posta pratos finos: “A polícia tem que ter independência. Alcides, você sabe muito bem disso. Temos que trabalhar para a sociedade e não apenas para a elite”


* Jornalista pelo UniCeub. Doutor e Mestre em Literatura Brasileira na UFMG, onde integra o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, da Faculdade de Letras. Poeta e autor do livro Machado de Assis, crítico da imprensa (Outubro Edições, 2023). É professor autônomo e pesquisador independente.