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sexta-feira, 14 de abril de 2017

FOGO AMIGO - Paulo Tadeu Poli

FOGO AMIGO

                       
A escada com degraus de madeira rangeria até sob o peso de crianças, que há muito, por ali não se via. O corrimão, também de madeira, confessava o uso quase secular, da mesma forma que os degraus, todos muito gastos. Ao suportar os passos vagarosos do velho obeso, com os seus mais de cento e vinte quilos, estalavam como se daquela vez não fossem suportar.
                        Otávio sabia que outra ladainha o aguardava, quando chegasse ao térreo. Era sempre assim: o aluguel que pagava quando podia dava contorno aos argumentos que, como o atraso, sempre se repetiam. 
                         Era uma pousada decrépita, mas nenhuma outra o aceitaria e mesmo nessa corria sérios riscos de ser expulso, afinal nunca se excedera tanto na soma dos débitos.
                         Tinha ódio mortal da proprietária, que também morava ali, e o fazia se alimentar de sopas que mais pareciam lavagem e com broas que se assemelhavam a pedras. Ainda assim só engordava. Divertía-se à imaginar que um dia a estrangularia, ela, tão caquética e pequena. Seria como matar uma galinha. Mas não, já tinha matado alguém um dia e por isso estava ali.
                         
O curare, extraído de plantas selvagens, tem imenso poder em interferir na contratilidade da musculatura. É um relaxante muscular por excelência. No meio indígena sempre foi usado para abater caças de grande porte. Aplicado nas pontas das flechas ou nas zarabatanas faz com que grandes animais desabem ao chão por perderem o domínio dos seus membros e, dependendo da dose, podem ter paralisada a respiração.
                         O Dr. Otávio cumpria plantão de clínica médica em hospital público. Sabia através dos jornais que um renomado jurista havia sido internado em UTI, de um importante hospital particular, após cirurgia cardíaca. O prognóstico do paciente era bom, cumpria a rotina adotada para pós-operatórios de grandes procedimentos, que em 1983 ainda eram muito invasivos e necessitavam de mais cuidados e tempo para a recuperação. Telefonou para o hospital, pediu para que transferissem a ligação para a UTI e perguntou se havia vaga, após relatar o caso clínico de um paciente seu. O colega que o atendeu informou que o hospital havia se descredenciado de todos os convênios e recebia, portanto, apenas pacientes particulares. Que haveria vaga caso se realizasse o depósito na tesouraria do hospital.  
                            O Otávio conversou com a família do seu paciente, após ter levantado os custos iniciais para a internação. A despesa era demasiada para os pequenos comerciantes, filhos da vítima. Porém diante da gravidade do problema fariam o possível, embora não tivessem crédito suficiente para aquele montante. Otávio, que vinha tratando há anos daquele paciente que no último mês teve agravado o seu quadro clínico, disse que financiaria em seu nome aquela despesa e passaria para os familiares o carnê a ser quitado. Assim foi feito e no dia seguinte o paciente foi transferido para a UTI, aquela em que estava o jurista.
                           Como médico de paciente ali internado Otávio tinha livre acesso àquele setor. Andava de um leito a outro observando os pacientes, olhando e analisando as prescrições de cada um, vez ou outra, discutia com um dos colegas daquele ambiente algum detalhe acerca de diagnósticos ou tratamentos. 
                             Localizou o leito do célebre safenado, que sedado, dormia. Aproximou-se e com a máxima discrição foi soltando aos poucos, e com delicadeza, as fitas adesivas que prendiam os acessos venosos (as agulhas) ao braço do enfermo. Assim quando houvesse algum movimento brusco elas sairiam das veias. Na sequência tirou uma seringa que continha três ampolas de Pavulon, do bolso do uniforme que vestia, e injetou no soro. Esse medicamento que trouxera do outro hospital é um potente relaxante muscular usado nas anestesias gerais, derivado do curare.  
                              Retornou ao leito do seu paciente e ali ficou a conversar com ele demonstrando a maior naturalidade possível. A bomba de infusão que mantinha o gotejamento do soro do jurista fornecia quantidades exíguas dos medicamentos diluídos.  Dessa forma demandou considerável tempo para que o alarme do oxímetro disparasse denunciando que a concentração de oxigênio nas células tornara-se crítica. A enfermeira foi até ao leito conferir no marcador a saturação. Viu que estava muito baixa e acionou a emergência. O médico intensivista surgiu de imediato solicitando o laringoscópio para promover a entubação. O paciente tornou-se agitado e teve que ser contido. O acesso venoso, como previsto, foi perdido. Novos frascos de soro com novos equipos e agulhas foram providenciados e novas veias foram puncionadas. Todo o material anterior foi para o lixo hospitalar, conforme a rotina de qualquer UTI, inclusive o frasco de soro que continha o Pavulon, derramado no chão em sua totalidade quando a agulha saiu da veia.
                            A parada respiratória foi de tal forma abrupta que quando a ventilação mecânica foi concluída as pupilas do paciente já estavam em midríase paralítica ( dilatadas ao máximo e indiferentes à incidência da luz) caracterizando morte cerebral. O paciente ficou meses em vida vegetativa até que sobreviesse o óbito.
                             A repercussão foi imensa como seria de se esperar. A imprensa questionou a diretoria do hospital para uma explicação, lúcida e plausível, que justificasse a repentina reversão de um quadro clínico até então favorável. Os médicos da UTI não tinham essa resposta. A banca de advogados associada ao jurista e do qual exibia o nome como protagonista, processou o hospital. A defesa começou a reunir elementos técnicos: no depoimento do plantonista chefe havia o relato de que teria sido uma parada respiratória, não uma parada cardíaca, além do mais, a restrição de oxigênio exigiu do coração esforço adicional para compensar esse fator e, apesar disso, suportou. Não houve parada cardíaca ou insuficiência do órgão operado, sequer ocasional, os eletrocardiogramas monitorados e registrados provam a eficiência do sistema cardiovascular. Portanto, a falência do sistema nervoso central (do cérebro), decorreu da parada respiratória e essa de outra ou outras causas, até então desconhecidas. 
                               Secundariamente às informações fundamentais acima expostas, disse “en passant,” que ao entubar o paciente, naquele instante em que se estabeleceu a máxima urgência, não teve tempo para usar relaxante muscular - derivados do curare - para esse fim, entretanto, conseguiu o intento com tal facilidade que dava a impressão de que teria usado tal produto. Como esse comentário era subjetivo, afinal tratava-se de uma impressão, uma sensação vaga, ninguém julgou relevante.
                                   Passados quase dois meses do dia fatídico para o jurista, quando o crime tomava contornos da perfeição, o Gouveia, o melhor amigo do Otávio, aquele que em tempos recentes fornecera o ombro para amparar o pranto do colega que terminara um casamento de seis anos, esse grande colega (o Gouveia também era médico) compareceu em um congresso de medicina em Fortaleza e no hotel onde se desenrolava esse evento, e no qual também os participantes se hospedavam, viu o médico intensivista, aquele que atendera o famoso advogado cuja família e sócios agora o processavam, e resolveu se apresentar, pois lhe ocorrera, de repente, que um determinado comentário poderia servir de bálsamo, de alívio, para o colega.
                        Não chegou de supetão, claro, apresentou-se apenas e mais tarde, numa segunda ocasião, quando notou que o colega estava refastelado numa das poltronas do Hall do hotel sentou-se próximo e, de chofre, disse: - o eminente advogado cuja banca te processa não era, ao contrário do que se propala, tão eminente assim, na vida privada. Resolvi te abordar porque tenho um amigo que também é colega nosso que foi cunhado dele por um período. Digo foi, no pretérito, porque houve a separação do casal e também porque o advogado agora está em estado vegetativo. O casamento com a irmã findou depois de agressões constantes, de manipulações sem fim, de muita mentira e violência. Ela sofreu terrivelmente por muitos anos por causa do casal de filhos pequenos e, na separação, ele ainda conseguiu ficar com as crianças além de deixá-la em completo desamparo. A sua condição de destaque perante os juízes fez com todas as suas alegações fossem aceitas, sem qualquer reparo. Felizmente, para a irmã do meu amigo, esse transtorno que te afeta, agora que ele está tecnicamente morto, para ela é um grande alento, já que poderá pleitear a guarda dos filhos.
                     Encerrada a exposição dos fatos o Gouveia tomou fôlego e observou a reação do colega. Percebeu a surpresa no seu semblante e surpreendeu-se com a pergunta: - qual é o nome desse seu amigo? “Otávio Augusto Hermann Travassos” disse o Gouveia. O colega pôs-se em pé como se fosse impulsionado por uma mola e saiu em direção à recepção do hotel sem sequer se despedir.
                         Otávio recebeu a ligação do Gouveia que lhe relatou o ocorrido, na pretensão de desabafar ante a grosseria do intensivista, sem jamais supor que o Otávio conhecesse o colega que ele xingava naquele momento. Outra vez surpreendido Gouveia ouviu do amigo um agradecimento irônico pelo que acabara de fazer, por ter comentado sobre assuntos familiares seus com um estranho. Em acréscimo ouviu do Otávio que iria viajar sem destino, que não o procurasse mais.
                         
Paulo Tadeu Poli
Havia um plano B, elaborado ao longo desses dois meses, quase engavetado em decorrência da bonança das investigações que não tinham qualquer base para sustentar-se. Agora, porém, graças à pontaria do fogo amigo, surgia uma plataforma marítima para dar sustentação à pesquisa da “causa mortis” do jurista. Iriam verificar que no dia da ocorrência o nome do Otávio estaria registrado lá, como médico convidado para acompanhar o tratamento de paciente por ele internado, iriam verificar de que forma fora feito o pagamento da internação do paciente dele. Com o motivo revelado tudo fecharia. Teria que desaparecer. O plano B seria executado imediatamente. 
                       Vendeu o carro, quase novo, a toque de caixa e pelo primeiro valor ofertado, numa loja próxima de onde morava. Sacou todo o dinheiro aplicado, que nada tinha de exorbitante, deixou o apartamento, quitado, ao abandono e partiu para o Mato Grosso. 
                          Despediu-se apenas da irmã e dos sobrinhos deixando entrever que não se encontrariam mais. Embarcou em um voo para Porto Alegre para deixar pegadas no sentido oposto ao que iria. De lá um táxi para São Paulo, depois um ônibus para Campinas, outro voo para Cuiabá, outro, ainda para Alta Floresta. Finalmente um avião pequeno o desembarcou na pista de garimpo do Marupá, no centro da região garimpeira do Pará. Lá, um médico alucinado havia construído o único hospital no garimpo que se teve notícia e o Otávio soube disso quando, recém-divorciado, tinha ido pescar com amigos no rio Teles Pires no extremo norte do Mato Grosso. Sabia que naquelas paragens não seria investigado e que, dada a carência de profissionais, não lhe negariam emprego. Ficou por ali cerca de dois anos, enquanto durou o empreendimento que nascera fadado ao fracasso. Reuniu com isso apreciável quantia em dinheiro e também de peso. Engordou propositadamente os primeiros 40 quilos, outros tantos viriam nos próximos anos. Ninguém o reconheceria com facilidade. O jovem médico esbelto e alto estava transformado: grandes bochechas agora cobertas por espessa barba o desfiguraram. Do Marupá transferiu-se para Marataíses no Espírito Santo. Escolheu o lugar porque o nome o conquistou e porque era litoral. Hospedou-se na pousada mais simples e já antiga na ocasião. Nunca deixou que se percebesse que tinha considerável recurso financeiro, assim, quando passados vários anos o dinheiro acabou, nada no seu comportamento foi alterado, a não ser os atrasos eventuais no pagamento do aluguel do quarto e das terríveis refeições. Já velho, conseguia algum dinheirinho de comissão com um farmacêutico de Vitória que o empregava como balconista. Sabia o empregador que havia caroço naquele angu, o Otávio, mesmo disfarçando ao máximo para ser coerente com a história de trabalhos anteriores nessa função, como tinha alegado quando procurou emprego, não raro deixava evidente que o seu conhecimento ia muito além do habitual para aquela atividade. O patrão percebeu que poderia explorar o velho da forma como bem entendesse. O Otávio recebia um pouco além do que gastava na pousada, mas tinha que suportar atrasos que o patrão, sem qualquer explicação, lhe impunha.
                   O desfecho dessa história ocorreu, depois de décadas, de forma abrupta e completamente inesperada: na pousada, entre os vários hóspedes havia um baiano que recebia, vez ou outra, iguarias da sua terra. No dia em que seria encerrada a permanência do velho médico ali, naquele dia no qual a paciência da proprietária teve fim, o baiano ofereceu a todos, no almoço, uma bandeja repleta de acarajés muito apimentados. A magérrima dona da pousada, afoita, serviu-se de um e com tal voracidade que mal se percebeu qualquer mastigação. Num átimo o acarajé desapareceu. Com ele, pimenta para nenhum soteropolitano botar defeito. Muita tosse, vermelhidão na face e em todas partes visíveis do corpo, depois arroxeamento, por fim a respiração sibilante, escassa, mínima e nenhuma.
                    O Otávio gritou a plenos pulmões para que a colocassem sobre a mesa, com o braço direito, como se fosse um limpador de para brisas, jogou tudo o que havia ali, inclusive os preciosos acarajés. 
                        Revelou-se: disse que era médico, e ordenou que segurassem com força os braços e as pernas da vítima daquele choque anafilático (crise alérgica extrema, que ocasiona edema de glote e obstrução completa das vias aéreas) pediu que lhe dessem imediatamente uma faca pontiaguda, várias havia pelo chão, passou o dedo indicador pelo espaço da traqueia logo abaixo do osso hióide  (o pomo de Adão) e ali, demarcado com a unha o espaço pretendido inseriu a ponta da faca. Tirou do bolso da camisa uma caneta Bic, que vivia ali, junto com uma caderneta onde anotava o seu diário, sua única distração; tirou a carga da caneta, tudo isso numa rapidez absurda, e enfiou o tubo da caneta no orifício feito na traquéia. Um barulho alto de sucção chegou a assustar os presentes, era o ar aspirado pelos pulmões ávidos por oxigênio. A paciente em segundos retomou a cor avermelhada e a movimentar o tórax, que como um fole, expandia e voltava em movimentos muito rápidos. Estava salva.
                      Ainda assim, claro, foi levada ao Pronto-Socorro e lá instalada uma cânula apropriada em substituição à caneta. Revertido o choque anafilático com corticóides, foi suturada a incisão improvisada, antibióticos em alta dose previniriam eventual infecção. 
                           
O Otávio que se arriscou a acompanhar a paciente até ao hospital foi intimado a provar que era médico, senão seria detido por exercício ilegal da medicina. Forneceu o número do CRM, não tinha documentos, ali, consigo. No site pertinente verificou-se a razão pela qual o seu número havia sido cancelado. A polícia foi chamada e ele foi preso
                             Na declaração que deu, rapidamente, enquanto algemado caminhava escoltado para o camburão, disse que já cumpria pena há décadas, imposta por ele mesmo e as suas circunstâncias e, que agora, numa penitenciária, talvez a diferença maior viesse a ser o fato de que, com certeza, passaria a comer melhor.

                         



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