Nestes tempos de pós-modernidade, de poesia neobarroca, de poema verbivocovisual e outras designações que têm norteado certa poesia praticada entre nós, o surgimento de um livro de poesia que explora a linguagem dos signos e dos símbolos, concomitantemente palatáveis à compreensão geral, é motivo suficiente para a manifestação de uma resenha ou de um artigo em letra de imprensa.
Napoleão Valadares, na sua construção poética, optou pela narrativa épica em que, com mestria e bom humor, funde a linguagem nobre, clássica, à linguagem popular, atual, numa tirada muito interessante e jamais vista em nenhum poeta brasileiro de qualquer escola. Mas o que salta aos olhos e aos sentidos é a correção gramatical, o domínio da língua, a clareza de expressão, a concisão. Além, é claro, do senso de humor nas “pilhérias” e “invenções” que o Autor derrama pelo texto afora. Sirva-se de exemplo o Canto XXVI, em que o narrador, em diálogo com Camões, ouve do mestre de Os Lusíadas a seguinte confissão: “Amor é fogo”, numa clara alusão ao célebre soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, do bardo português.
Por força da circunstância de leitura, há que se fazer agora uma referência enfática: ao longo do poema são praticados os mais variados tipos de verso decassilábico, que vão dos mais comuns (heroico e sáfico) aos de maior raridade. Por exemplo: a gaita galega (também chamada moinheira), decassílabo que apresenta sílabas tônicas nas posições 4, 7 e 10; e o que Anderson Braga Horta chama de “decassílabo átono”, aquele cuja décima sílaba abre mão da tônica para criar um novo tipo de enjambement – o que desafia a linguagem poética em benefício da fluência rítmica da prosa. Deve-se acrescentar que, de rara apresentação nos poemas latinos, esse tipo de verso aparece, no entanto, algumas vezes em letras de música. (Quem ama a poesia e conhece um pouco os seus mistérios sabe que a figura da métrica no poema não é, como na música, uma regência implacável sobre o ritmo. Mas sabe, sobretudo, que é o ritmo que dá beleza à música, bem como ao poema. Fora disso, a poesia escrita sob os parâmetros do que foi mencionado no primeiro parágrafo deste texto corre sério risco: pode cair no vazio absoluto ou no descrédito normativo da língua. E aqui cabe um provérbio chinês: “O tolo corre onde o sábio não andaria”.)
Napoleão Valadares |
Outro registro que vale a pena ser consignado é com relação à simetria de alguns grupos de versos encontrados em três cantos do poema. A saber: no Canto XXV, que trata do Descobrimento da América, há, além da simetria, um reducionismo consciente do verso “Colombo olhando o azul” para, dez versos abaixo, “Olhando o azul” e nos dez seguintes, simplesmente “O azul”. No Canto XXVIII – sobre Shakespeare – ocorre semelhante simetria do número oito entre os versos “Hamlet, o Príncipe da Dinamarca”, “Depois, Otelo, o Mouro de Veneza” e “rapazes muito diferentes delas”. Finalmente, no Canto XXXII – num encontro com Dostoiévski e Tolstói – pode ser facilmente encontrada a relação com o número sete entre os versos “porque o primeiro, condenado à morte”, “O outro, mundana mocidade, estroina” e, finalmente, “os meandros da alma humana conhecia”. Mas esta numerologia deverá ser tratada em outro estudo.
Napoleão Valadares, com este livro, apresenta um poema novo e singular, mas não pretende inventar ou reinventar estilo nem fundar escola. Quer tão-somente fazer partícipe o leitor dos delírios da febre, nesta grande viagem pelo mundo e pela história da humanidade, empreitada que realiza, com percuciente habilidade, por intermédio de uma linguagem poética fluente e agradável.
Delírio Lírico é leitura obrigatória para todos aqueles que amam a tradição e aceitam o novo, pois essa dicotomia geralmente possibilita maior compreensão e fruição da Arte, seja ela musical, pictórica ou literária.
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João Carlos Taveira |
* João Carlos Taveira, mineiro de Caratinga em Brasília desde 1969, é poeta e crítico literário, com vários livros publicados, entre os quais: O Prisioneiro (1984), Aceitação do Branco (1991), A Flauta em Construção (1993), Arquitetura do Homem (2005). Em 1994, recebeu do GDF a Comenda da Ordem do Mérito Cultural de Brasília.
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