O livro mais delicioso e sério que li ultimamente, com atraso de quinze anos, intitula-se Paris... nos tempos de Debussy e é de autoria do pianista e acadêmico Oriano de Almeida, já falecido. Publicado em 1997, com apoio do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e do Banco Real, o livro é uma biografia do autor de Prélude à l’après-midi d’un faune, La mer e Pelleas et Melisande, mas também um retrato vivo da Cidade Luz, pintado na segunda metade do século XIX. Mas, nesse curto espaço de tempo, somos levados a empreender uma viagem vertiginosa pela vida parisiense, com suas ousadas, borbulhantes e surpreendentes cenas de humanidade explícita. Poucas cidades do mundo disseminaram conhecimento científico, literário, musical e pictórico como a capital da França naquele período.
Oriano de Almeida, com riqueza de detalhes, compõe um painel histórico abrangente, que inclui a ciência, a música, as artes plásticas, a literatura e, principalmente, a política, na transição da monarquia para os ventos inconstantes da república — num ambiente transbordante do espírito de liberdade que pairava sobre o mundo moderno. A narrativa tem início em 1862 quando nasce Achille-Claude Debussy, em 22 de agosto, na tranquila Saint-Germain-en-Laye, cidadezinha situada a poucos quilômetros de Paris.
Paralelas ao nascimento e evolução do pequeno Claude, até sua transferência definitiva para a capital, vão surgindo informações cristalinas nascidas da pesquisa minuciosa e do trabalho diligente de composição do autor norte-rio-grandense nascido em Belém do Pará. Depois, Oriano de Almeida se deteve na fase impressionista, para justificar suas descrições. Mas, por força do tema e das circunstâncias históricas, transcendeu os limites da escola que sucedeu ao naturalismo e ao simbolismo francês e pintou um quadro de época deliciosamente encantador. Nem a pobreza e parvoíce da família Debussy nem o barro que moldou a personalidade do pequeno Claude conseguiram ensombrear as páginas de seu estudo. Há uma brisa suave e um colorido ameno pairando sobre os personagens que povoaram Paris naqueles tempos, tanto os de têmpera maleável, como Charles Gounod, Camile Saint-Saëns, Gustave Flaubert, quanto os irascíveis Victor Hugo, Paul Valéry, Anatole France.
Oriano de Almeida |
Ao fundir as artes e a política num mesmo cadinho, o autor nos oferece momentos de delicada beleza plástica. Um exemplo delicioso fica por conta das viagens de Dom Pedro II àquele país, que o acolhe com entusiasmo, respeito e fidalguia. Na primeira delas, Victor Hugo, mesmo sabendo do interesse do imperador em conhecê-lo, nega-se veementemente a qualquer possibilidade de encontro. Na segunda, no entanto, o representante máximo do Brasil dá uma aula de nobreza, humildade e desprendimento: sai do hotel em que estava hospedado e, sozinho, vai até a casa do autor de Os miseráveis, batendo-lhe à porta às nove horas da manhã, naquele longínquo mês de maio de 1877. Ao vê-lo, o escritor, entre desconsertado e surpreso, o recebe já sem nenhuma hostilidade e a conversa se estende até próximo do meio-dia. Na terceira, como todos devem saber, o pai da Princesa Isabel ausentou-se do Brasil por motivo de saúde, o que deu à filha oportunidade de abolir a escravidão, para desespero e desgosto dos poderosos de plantão. Na quarta e última, por força de um golpe sujo e desrespeitoso com a sua pessoa e com a nação, está ali para morrer. Mas essa é outra história.
Claude Debussy |
Ao concluir a leitura, a sensação que fica é uma só: o Brasil é um grande arquipélago composto de pequenos arquipélagos, como diz o professor Ático Vilas-Boas da Mota do alto de seus conhecimentos e experiência. Os estados da federação, mesmo com a assistência do governo central, acabam ficando muito a dever, pois os representantes políticos veem a arte e a cultura, para dizer o mínimo, como antípodas aos seus interesses pessoais, geralmente mercantilistas e corporativos.
Livros como esse deviam ser editados por uma grande editora e distribuídos nacionalmente, para que os jovens tivessem acesso a uns instantes mágicos da história universal. O pianista que o escreveu — Oriano de Almeida — partiu vendo sua obra apreciada apenas por leitores do seu pequeno arquipélago: Rio Grande do Norte. Se tanto.
Brasília, 17 de junho de 2012.
* João Carlos Taveira é poeta e crítico literário, com vários livros publicados. Pertence à Academia Brasiliense de Letras, à Associação Nacional de Escritores (ANE) e ao Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Mais informações biobibliográficas no Google, especificamente na Wikipédia.
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