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domingo, 2 de julho de 2017

ARQUITETURA DE ESPANTOS - João Carlos Taveira*


  



Acabo de ler Sortilégio possível, ainda inédito, mas certamente o mais maduro livro de poemas de Ivan Marinho. E talvez o mais oral e visual, desde que aprendeu a descansar os pincéis para abraçar a poesia, uma vez que se divide agora em “três metades” distintas: as artes cênicas, as artes pictóricas e a literatura. Sem contar, naturalmente, a inconfundível disposição para voar.




“FRAGMENTO DO ACASO
Sem gravidade flutuam
Estilhaços de um espelho
E cada parte reflete
Um fragmento do acaso.

Giram dando a impressão
De serem um universo
E são, de certo, mil vezes,
A expressão original

Da mesma parte perdida
A se olhar eternamente.
Ali, imagem pra sempre,
Como se fosse real.

E menos se vê no mundo

E no mundo só se vê
Como entérica alegria
Buscando a rima vazia
De não ser, só parecer.”


Pois bem. O livro está simetricamente construído sobre dois eixos: poemas curtos e estrofes de quatro versos, algumas rimando, mas a maioria sem rima alguma, bastando-lhes, quando muito, a métrica para alcance do ritmo e da plena musicalidade. Ivan se mostra muito à vontade nas redondilhas menor e maior, e grande parte dos seus poemas encontra-se esculpida em versos brancos.

“ORORUBÁ

Dançando em sua cabeça
Voltas ocres de corridas
Ondulam verdes cabelos
Juntos, outros, ao redor.

Em cada volta, a memória
Gesta um breve esquecimento
Para no centro um encontro
Ancestral se revelar.

Memória de gerações
Despertada em sentimentos
Perdidos anos a fio
Das lembranças, das histórias...

E se cabelos são matas,

Tantas voltas, todos um,
No meio da ebulição
Surge, como larvas, homens
E a guerra se faz canção.”

       
Outra característica do autor deste novo trabalho é o lirismo, não o lirismo raquítico e sifilítico magistralmente referido por Manuel Bandeira, mas o lirismo sadio e arejado de quem sabe das agruras da vida e também das delícias do sobrevoo. Ivan, com seus versos, lúcidos e antenados, sabe que o sonho por si só não basta, é preciso colher “nas miragens munição para usá-la quando no descaminho, na vil presença avessa e inesperada”. Por isso, sem titubeio, vem praticando uma poesia também de preocupação social, em que o homem, embora sujeito aos desmandos, é senhor absoluto do rumo de seus ideais. Basta ir à luta.

“PAI, PERDOAI!

Massa, úmida, de barro
Amassada pelas mãos
Cúmplices ou desconhecidas
Modelando a intenção.

Bloco que forma e reforma
Sempre perfeito, pois um,
Quando deforma ignora,
Se não se compara algum.

E cresce lá, grande barro,
Sem jamais querer o forno
Se o fim é a eternidade:
Quente nem frio, só morno.

Sucedem mãos, outras mãos,

Tão mesmas a modelar
A forma que se desfaz
E se refaz sem mudar
Porque não sabe o que faz.”

        Sortilégio possível, editado como merece, há de demarcar um terreno fértil e promissor para o pouso deste arquiteto de espantos. Ivan Marinho, além de amplidões, nuvens e cores, tem, desde já, espaço seguro na grande seara da nova poesia brasileira.
  
Brasília, 15 de abril de 2014.
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*João Carlos Taveira é poeta e crítico literário, com vários livros publicados. Em 1994, recebeu do GDF a Comenda da Ordem do Mérito Cultural de Brasília, por relevantes serviços prestados. Pertence ao Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, à Associação Nacional de Escritores, à Academia Brasiliense de Letras, entre outras.


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