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quarta-feira, 8 de março de 2017

Recado Capital - Paulo Tadeu Poli

RECADO CAPITAL
Qualquer recado é pequeno, pois encerra poucas palavras. Se agiganta, porém, caso a breve mensagem seja capital. 



             Era tratado por Batata, não pela obviedade do fato de ser baixo e gordo, até porque, quando lhe impingiram o apelido, era ainda bem magro. Depois engordou e tomou a silhueta do tubérculo. Mesmo assim sempre prevaleceu a razão primeira da alcunha: o cheiro. Não o cheiro da batata fresca e própria para o consumo, que mal se nota, mas daquela apodrecida, da qual se quer ficar longe. Assim, quando o observador avistava o baixo e redondo piloto a considerável distância, a razão principal do apelido se prendia à forma. Um pouco mais próximo, ao odor. Bem próximo, não há registro de testemunhas.
             O Batata tinha horror à água. O último banho que tomou, segundo o seu próprio relato, foi quando o seu Cessna Skylane sofreu pane na decolagem de uma pista de garimpo. Isso ocorreu porque o avião havia pernoitado ali, fora do hangar, e chovido muito. Com isso a água da tempestade invadiu os tanques - aviões têm mais de um - que ele, o Batata, esqueceu de drenar antes da decolagem.
             
Cessna Skylane
O Cessna recém-decolado tossiu, tossiu e apagou. Em frente o caudaloso rio Teles Pires, que se transformou, naquele instante, em pista de pouso. Ali ele mergulhou.
              Não sofreu, o Batata, um arranhão sequer. Porém passou muito tempo amaldiçoando a mesma água que sempre detestou. Naquela ocasião poupara a sua vida, mas levara o seu avião e, além do mais, por culpa dela mesma que não deveria ter entrado nos tanques de combustível.
               Agora, alguns anos o afastavam desse mergulho, ou do seu último banho, como preferirem. Estava sentado no barranco de um outro rio, do Crepori, um dos vários afluentes do imponente rio Tapajós. À sombra de uma imensa castanheira e envolto por nuvens de mosquitos. Na outra cabeceira dessa pista de garimpo estava o seu novo Cessna Skylane, que adquirira depois de muita luta, voando como empregado, com o pescoço a prêmio, considerados os elevados riscos envolvidos nessa atividade.
                 Têm dias que se pede para esquecer. Esse, com certeza, ainda mais do que o dia do mergulho foi para o Batata tão execrável que se desdobrou em outros e, todos, absolutamente descartáveis.
                  Ao nascer do sol havia decolado da pista do Marupá que também, a exemplo dessa que agora se encontra, fazia parte de um conjunto de pistas de garimpo, relativamente próximas, que surgiram para abastecer centenas de equipes de garimpeiros, em vários locais, de uma extensa região aurífera. Do Marupá pousou em várias dessas pistas entregando encomendas.
                   Cumpria uma rotina, portanto, não atentava muito para detalhes. Estava ansioso para chegar em Alta Floresta, na cidade sede no Mato Grosso de onde partiam grande parte dos aviões que abasteciam aqueles garimpos. Nesse dia seria comemorado o aniversário de um dos colegas. Muita farra e cervejada o aguardavam.
                     Descarregado por completo o avião e cumprido o último compromisso decolou leve, livre e solto para a civilização. Assim, os pilotos, designavam qualquer cidade. 
                     
Céu de brigadeiro, fim de tarde, talvez até escurecesse antes de chegar, mas conhecia muito bem toda a região e isso não seria problema. Os olhos corriam em varredura os inúmeros instrumentos do painel, isso era medular, fazia sem perceber, já tinha um tempo considerável de voo quando percebeu, numa dessas olhadas, que os indicadores de combustível acusavam o limite mínimo em ambos os tanques. Gelou. Deveria ter feito um desvio de rota, como havia planejado desde o amanhecer, pousado em Santa Júlia,  abastecido lá e depois prosseguido para o destino final. Esquecera completamente disso, no afã de se encontrar com os amigos na festança.
                     A alternativa é a amante dos pilotos, principalmente os de garimpo. O Batata era muito experiente e como não existia GPS decorava todos os acidentes geográficos de todas as suas rotas habituais. Cada detalhe, curvas dos rios e riachos, coloração das matas, desmatamentos e que tais. Num estalo calculou a nova proa que deveria adotar para alcançar, com aquele escasso combustível, a única possibilidade de salvação, a pista abandonada do Ermélio. Apenas ela a sua autonomia poderia permitir. 
                      Chegou em instantes na alternativa. Com o abandono,  uma nova vegetação, composta principalmente por embaúbas,  havia tomado parte da pista. Mas estava leve e era muito hábil. Pousou assim mesmo. Sem maiores problemas.
                       Agora estava ali. Sentado na barranca do rio e tendo que tomar água, coisa que detestava. O seu estoque de cerveja, que sempre carregava no avião, já era.
                       Ficava o tempo todo agredindo a si mesmo com muitos tapas, a impressão que tinha era a de que estaria a ocorrer ali um congresso internacional de mosquitos. E, os mosquitos, pareciam ter certeza de que se tratava de uma lavoura de batatas em decomposição. 
Rio  Crepori

                       Em instantes escureceu.
                       O Cessna Centurion é maior e bem mais potente do que o Skylane. Ao decolar, quando se utiliza a potência máxima, produz um som típico que provém do resultado de uma somatória de fatores, tornando aquele alto zumbido uma exclusividade. Muito bonito segundo a unanimidade dos pilotos.
                        Já tendo anoitecido, aquele som longínquo e característico, só poderia ser do avião do Ameba, concluiu o Batata.
                         Era Ameba por duas razões. Ou melhor: por uma razão e um desarrazoado.
A razão, pelo fato de que o seu nome era daqueles que desde o batismo aguardam por um apelido. Era impronunciável, por ter sido fruto da junção do nome dos pais e possivelmente dos irmãos. Quanto ao desarrazoado se exige explicação mais ampla. 
                         Quando chegou em Alta Floresta se apresentando aos colegas pilotos com um palavrão como nome, causou espanto. Entretanto, nada poderia parecer mais gritante do que a sua extrema magreza. De perfil parecia um barbante, dos finos. Magreza semi-esquelética. Virou missão, entre os pilotos, descobrir se ele comia. Decorridas algumas semanas sem que ninguém tivesse assistido a uma mastigação sequer do investigado, concluiu-se que ele não comia.
                         A partir desse fato, gerou-se discussões, que culminaram com o desarrazoado componente do apelido.
                         Ao se debater o fato sobre-humano dele não se alimentar, claro, sobrevinham controvérsias. Um dos contendores, que se opunha à teoria aceita pela maioria, afirmava que isso, a tese de que ele não comia, era impossível. Que ninguém poderia sobreviver só com bebidas e que maconha não alimenta e, além do mais, dá uma fome incontrolável. Replicava que não existe ser vivo que não se alimente, mesmo os microscópicos. Portanto, concluía: o magrela come em casa, de madrugada, quando ninguém vê. As amebas comem, do jeito delas, por fagocitose ou o que seja, mas comem. Alguém aqui já viu uma ameba comendo?
Essa pergunta selou a discussão e tatuou na testa do piloto recém - chegado, o desarrazoado apelido: Ameba.
                          Ele próprio adotou a esquisita alcunha e se apresentava como tal, após alguns anos.
                          Pois bem, esse distinto jovem acabara de decolar da pista do Goiano, distante uns vinte minutos de voo da pista abandonada do Crepori, onde estava o Batata e mais da metade dos mosquitos do mundo.
                           Fazia isso, volta e meia, o Ameba: decolava no início da noite e pousava em Alta Floresta através da ajuda de funcionários da sua agência de táxi - aéreo, que de antemão prevenidos, iam ao aeroporto iluminar a pista com os faróis de vários carros. Fazia assim porque não conseguia levantar cedo e dessa forma usava um pedaço da noite.
                           
O Batata conhecia tudo e todos. Sabia que o Ameba decolara do Goiano e o tempo preciso no qual tangenciaria o local em que estava. Correu carregando pista acima o seu considerável sobrepeso, entrou no avião e acionou o motor. Nas aeronaves ao se ligar o Master - chave geral - aciona-se todos os equipamentos do painel. O consumo da carga da bateria com o motor da aeronave desligado é proibitivo, dura cinco minutos. Portanto tem que falar ao rádio com o avião funcionando e queimando combustível. Deixou para ligar apenas quando avistou, na rota prevista, as luzes das pontas das asas do Centurion. Ainda assim demandou um tempo considerável até que fosse ouvido pelo colega.
                            - Lima Quebec Mike - LQM o prefixo do Cessna do Ameba - na escuta?
                            - Afirmativo, prossiga colega.
                            - Ameba, aqui é o Batata, esqueci de abastecer no Santa Júlia e alternei a pista do Ermélio. Preciso que você avise o meu pessoal em Alta Floresta para que me socorram com combustível ao clarear do dia.
                             - Mensagem recebida cinco por cinco com som alto e claro. O recado será transmitido tão logo chegue ao destino.
                             - Muito obrigado Ameba.
                            O Batata trancafiou-se no avião para poder dormir com apenas algumas centenas de mosquitos e com um calor senegalês.
                             O Ameba pousou no destino conforme o previsto e recebeu, de imediato, dos funcionários da agência, uma bela notícia: naquele dia haviam conseguido a aprovação do financiamento de um bimotor, que pleiteavam há muito tempo e esse seria o avião novo que o Ameba iria voar. Saíram do aeroporto em disparada para o bar, comemorações mil. Batata, que Batata?
                             O dia clareou, pássaros incontáveis alardeando a aurora, mosquitos aos milhões entorpecidos com o sangue do Batata, curtido em muita cerveja, fugiam do sol e adentravam na mata.
                             Com a aparição do astro rei, impossível ficar dentro do avião. Voltou para a margem do rio à sombra de uma árvore e esperou, esperou, esperou…
                             Nada para comer, fome monumental. E nada de algum avião, nada, nenhum barulho próximo. 
                               Entardeceu, anoiteceu e nada... 
O estômago começou a doer, muito.
                               Os fundamentos da fisiologia humana, ou seja: os princípios que regulam as nossas funções vitais, são oriundos dos homens das cavernas. Vêm dos primórdios da nossa existência. Lá, na época das trevas, havia a necessidade da fuga momentânea e, para tanto, produzimos, ainda e sempre, a adrenalina, através das glândulas supra-renais. Esse hormônio - deveras conhecido - na dependência da quantidade promove várias transformações, quando lançados na circulação: aumenta a frequência cardíaca, para podermos dispor de potência para a luta ou para a fuga; faz com que as artérias de menor calibre, que irrigam a pele e outros órgãos não fundamentais para a sobrevivência, sejam estreitados ao máximo possível para que o maior volume de sangue vá para os órgãos vitais: coração, pulmões, etc. Por isso a palidez diante dos sustos. E, entre outros efeitos, faz com que a mucosa do estômago lance grandes quantidades de ácido clorídrico para digerir rapidamente maiores quantidades de alimentos; visando gerar energia frente à emergência. 
                               
O Batata estava, agora que escurecia, encostado, em pé, numa grande árvore. Encontrava-se em alerta máximo, pálido, sudoreico, salpicado de mosquitos e com a mão sobre o estômago em decorrência de forte dor. O ácido que visa digerir o bolo alimentar no estômago, na ausência de algum produto para ser digerido, corrói a própria mucosa. 
Baixo, gordo e com a mão sobre a barriga, em tudo lembrava o Napoleão Bonaparte.
                                 Ele queria ter certeza de que o Ameba não tivesse conseguido chegar ao destino; que na noite tivesse se perdido; ficado enroscado com o avião em alguma enorme castanheira. Só assim poderia perdoá-lo. Só se estivesse morto.
                                  Via pouquíssima chance de escapar daquela situação. Já vislumbrava a própria morte quando luzes piscantes dos spotlights de uma aeronave chamaram a sua atenção. Estava muito alto, quarenta mil pés ou mais. Era um jato comercial com a proa para Manaus, segundo calculou o Batata. Correu novamente em direção ao seu Skylane, torcendo para que ainda tivesse um pouco de combustível. Não tinha. Acionado, o motor não funcionou. Apelou gritando, desesperado, no rádio. Foi falando de qualquer jeito, repetindo a sua posição na frequência usada pela aviação comercial. Não obteve resposta alguma, a bateria ficou sem carga. Os spotlights, aos poucos foram desaparecendo na imensidão daquele céu infinito. 
Já não ligava mais para os mosquitos, os milhões deles, o calor tórrido, a imensa dor de estômago. Só pensava no Ameba. Nunca, em tempo algum, esse protozoário foi tão lembrado. Agora já não o perdoava nem que tivesse morrido.
                                    Nas regiões garimpeiras imperava a violência. A vida não tinha grande significado, sem lei, no meio da selva, era o salve-se quem puder. Os pilotos de garimpo eram respeitados pelos garimpeiros, simplesmente porque dependiam cotidianamente deles. Por essa razão raros pilotos andavam armados. Mas não o Batata. Na sua pasta carregava além dos mapas e apetrechos de navegação, um lustroso trinta e oito. Gostava de atirar em alvos. Durante a tarde matara um pássaro e o comera cru e mal depenado.
                                     O Ameba, ao contrário, era pacifista por excelência. Tinha horror às armas. Era vocacionado para o convencimento, demonstrava inteligência e cultura insuspeitas no dia a dia. Era sempre convidado para representar os pilotos nas ocasiões festivas da região; nessas oportunidades ofuscava os políticos com discursos bem elaborados. Além do mais possuía um vozeirão de barítono, impressionante.
                                       
Piper Cherokee
 Outro dia se apresenta. Pássaros que chegam e mosquitos que saem. Avião que chega. O quê? Como? O Batata acordou em condições físicas lastimáveis devido ao barulho de um Piper Cherokee. Viu o avião do seu sócio taxiando ao lado do seu.
                                          Ao ser socorrido, mal podendo andar pela imensa fraqueza, balbuciou apenas isso: o Ameba está vivo?
                                          Em Alta Floresta foi internado. Recuperou-se em dois dias. Reuniu a sua turma e caminhou célere para o pátio do aeroporto. O Ameba iria chegar de um voo em instantes.
                                           Não fosse o comandante daquele jato comercial ter captado a sua posição e transmitido a informação para o controle de Manaus, que por sua vez, havia passado as coordenadas geográficas  para vários pilotos de garimpo, ele, o Batata, estaria morto.
                                           Com a maleta na mão direita e dentro dela o trinta e oito, inclusive já engatilhado, olhava para a cabeceira da pista tentando identificar entre inúmeros aviões que pousavam e decolavam, o Centurion do Ameba.
                                        Todos assistiram ao pouso macio do Lima Quebec Mike. O Ameba taxiou, parou, desceu do avião e só depois, quando caminhava em direção à sede do aeroporto é que percebeu uma turma, de conhecidos pilotos, compondo uma barreira para bloquear o seu caminho. Estancou, olhou, e só daí viu o Batata. Caiu a ficha. Levou a mão à testa, mostrando com o gesto ter compreendido tudo o que ocorria.
                   O Batata avançou sozinho em sua direção, os demais permaneceram onde estavam. Ainda assim, distância era pequena entre todos. 
                    O zíper da pequena pasta foi aberto. A mão direita do Batata sumiu no seu interior. 
                     A mão direita do Ameba elevou-se sobre a  cabeça em sinal de espera.
                  Diante da surpresa, fazendo ressoar o seu vozeirão, improvisou.               Antes que me mate analise a seguinte evidência: esqueci de dar o recado que me pediu. Isso lhe trouxe seriíssimos transtornos, não é difícil imaginar. Entretanto, se tirar a minha vida por essa razão estará admitindo que na sequência deverá cometer o suicídio. Afinal, antes do meu pouco-caso pelo seu recado, houve o seu próprio desleixo, quando ao contrário do que poderia se esperar de um experiente piloto de garimpo, você cometeu o imperdoável erro de esquecer-se de abastecer o avião. Em suma: você esqueceu-se de abastecer e eu, apenas, de dar um recado. 
                                                O Ameba foi aplaudido por todos. Com urras e tudo o mais.
                                                O agora desalmado Batata retirou da pasta a mão direita. Agora desarmada.
PAULO TADEU POLI
Escritor

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