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domingo, 26 de março de 2017

ONDAS LAICAS - PAULO TADEU POLI

ONDAS LAICAS
ADF - Automatic Direction Finder. 
           Localizador Automático de Direção.
           Instrumento muito usado por pilotos de aeronaves leves, antes do surgimento do GPS.
           Ao receber as ondas de F.M. aponta a direção da emissora.
           



              Os Mórmons vinham dos EUA trazendo monomotores novíssimos e causavam tremenda inveja nos pilotos de garimpo que, invariavelmente, voavam aviões antigos, importados há muitos anos. Eram os missionários, pilotos do primeiro mundo; razão pela qual mostravam péssimo desempenho nas operações críticas do que há de pior no terceiro mundo: as precárias pistas da selva amazônica. 
             
O missionário Bob, recém-chegado, partiu para a sua primeira missão, com um Cessna 185, estalando de novo. Levava outro colega. Poderia ter desistido de tentar o pouso quando percebeu que a precariedade da pista era muito maior do que supunha. Mas achou que não. Teria que tentar, afinal era um missionário. Tocou antes do início, com medo de ultrapassar o fim daquele disforme carreador que chamavam de pista. O avião “tropeçou” em várias valetas e morrinhos de terra e virou de ponta cabeça numa cambalhota que os pilotos chamam de pilonagem.
                O passageiro fraturou uma das clavículas e o piloto um corte no supercílio. Nada além.
                O cacique promoveu a pajelança e o piloto pediu, através do rádio amador da aldeia, ajuda imediata com a vinda de outro avião para socorrê-los. Aquele com o qual chegaram teria que ser desmontado e removido em barcaças pelo rio, distante uns trinta quilômetros de onde estava, muito danificado.
                  O Rani tinha nome de índio, mas era alagoano tal qual o Graciliano Ramos e o Daniel Barros. Discreto ao ponto de raramente ser notado. Via-se de tudo entre os pilotos de garimpo: advogados, engenheiros, médicos, mas não se via o Rani; a discrição era tamanha que o camuflava. No meio aeronáutico local, para os que o conheciam, porém, ele era o cara. Pilotava como ninguém - e que se diga, ali só sobreviviam os ótimos - além de ter virtudes ocultas que raros conheciam.
                   Foi seminarista, por vários anos, influenciado pelos pais, religiosos fervorosos. Sua mente prodigiosa e arguta mostrou-se, entretanto, muito mais afeita ao darwinismo. Deixou o seminário. Ateu como pedra. Prestou vestibular para o ITA, após um ano de curso preparatório e passou. Não gostou da disciplina militar, desistiu. Estudou música por um tempo, tinha o dom, além do mais. Até a sanfona, martirizada pelos ritmos gauchescos se tornava doce e melodiosa em suas mãos. Resolveu voar, brevetou-se e os céus se curvaram ao seu talento.
                  Os mórmons estavam lá, como não poderia ser diferente, até que o socorro os alcançasse. O piloto com a cabeça enfaixada e o outro com uma tipoia improvisada. Aquela tribo, como tantas outras na Amazônia, já se apartavam, naquela época da década de 1980, das definições dos indigenistas irmãos Villas-Bôas e do Darcy Ribeiro, entre outros. A civilização as contaminara: para o bem ou para o mal. No caso em pauta para o bem, afinal, havia ali comunicação por rádio e recursos mínimos para cuidados médicos básicos 
                    Em meio aos sons de insetos que zoavam  incessantemente em todos os ouvidos presentes,  percebia-se, ao longe, um zunido característico de um avião. Os gringos nem se animaram porque, antes de qualquer pretensão de que alguém ali pousasse para socorrê-los, imperava a necessidade de se retirar o avião deles, o sinistrado, que ocupava o início da cabeceira da pista mais favorável para pouso, já que o vento soprava, como naquele momento, com muita prevalência no sentido oposto ao agora obstruído. Os índios, através de sinais e o que seja, deixaram entrever que iriam reunir mais pessoas para retirar o avião “capotado” daquela inconveniente posição. Os mórmons pareceram compreender, também, que isso só se daria no fim do dia, quando a maioria voltasse das pescarias e caçadas. Dessa forma, aquele barulho de um avião que se aproximava cada vez mais não iria lhes dizer nada, já que o pouso seria impraticável. O que, aliás, já havia se mostrado, sem o empecilho  adicional, há poucas horas.
                   
Cessna
Aquele rugir de um potente motor Continental 300 hp de um Cessna 185, igual ao sinistrado, porém muito mais antigo, tornou-se presente, tão próximo quanto as batidas dos corações ofegantes dos acidentados. O avião chegou a toda velocidade, mais de trezentos quilômetros por hora, provindo de um voo picado passou em um rasante rente ao solo e a asa esquerda a centímetros do ventre do outro 185. Na sequência subiu com o nariz bem na vertical, fez um chandelle, manobra na qual uma das asas afunda e o avião perde altitude imediatamente e veio todo flapeado, pendurado no motor, urrando e silenciando intermitentemente, na busca da velocidade mínima de sustentação, muito prejudicado, esse intento, pelo vento bastante desfavorável. O Cessna, assim mesmo, tocou no primeiro metro da cabeceira oposta ao outro avião e parou a exíguos centímetros dele.
                   Os índios que ali permaneciam, insuficientes para tirar o entulho da pista, eram mais que suficientes para ocultar o piloto, quando cercaram o avião após o pouso. O Rani de bermuda e sandálias havaianas e com esse nome, se tirasse a camiseta poderia ser adotado pela tribo. Os gringos ficaram pasmos quando ele foi apresentado. Estarrecidos ainda estavam, pela façanha daquele pouso mais-do-que-perfeito.
                     Comentaram, depois se soube, com um desprezo que beirava o asco, que aquele sujeito, com aquela aparência desprezível, denegria a imagem heróica dos pilotos. Isso dito na frente do próprio criticado, no mais alto e bom som que a língua inglesa viesse a permitir.
                       Entre gringos e índios o Rani, sinalizando, orientou para que os mórmons embarcassem imediatamente no avião. Houve, de imediato, a resistência dos americanos que sinalizavam em gestos largos dizendo que não iriam antes da retirada do outro avião da pista. Que seria impossível decolar daquele jeito. O Rani simplesmente fez um gesto de despedida numa espécie de continência militar e se dirigiu para o avião. Resoluto, sem olhar para trás. Os dois gringos correram em direção ao maltrapilho piloto e embarcaram no velho 185.
                         O mórmon piloto sentou no banco ao lado do Rani e o outro no banco atrás deste.
Ao taxiar o avião foi levado até a cabeceira oposta e avançado alguns metros além do seu limite, com a hélice roçando a mata mais baixa e frágil. Tendo obtido o máximo de aproveitamento possível promoveu o giro de cento e oitenta graus ficando de frente para o avião avariado que parecia demasiadamente próximo. O gringo piloto só dizia: impossible, impossible. 
                         O Rani travou os pedais de freios - os aviões têm dois - com as pontas dos pés e levou a manete de potência ao máximo. O 185 iniciou o deslocamento tão logo liberados os freios, mostrava sentir o peso dos dois enormes passageiros. Mas o potente motor permitia ganhar velocidade. Quando muito próximo do obstáculo, do avião sinistrado, sob os gritos do outro piloto ao lado dizendo que iriam bater, o Rani levou a mão à alavanca do flape manual e comandou full flap, flape total, o 185 saltou o obstáculo e saiu amolecido do outro lado com a buzina de estol avisando que iria voltar para o chão. De fato voltou para o restinho de pista que ainda havia; o Rani comandou o flape para vinte graus e tirou novamente o 185 do chão, agora rente à vegetação rasteira que emoldurava a pista. Foi fazendo curvas suaves buscando os obstáculos mais baixos até obter velocidade suficiente para ganhar altitude e prosseguir o voo, O piloto gringo simplesmente não acreditava no que acabara de presenciar.
                           
Cúmulus Nimbus
Dali, da aldeia, aproou para a região dos garimpos, ficava à esquerda da rota original, porém quando não existia o GPS se fazia necessário conhecer o terreno sobrevoado. Com poucos minutos de voo, já bem alto, verificou nuvens escuras e muito volumosas, os famosos Cúmulus Nimbus, conhecidos pelos pilotos pela abreviação CB, que provocam muita turbulência oferecendo riscos incalculáveis para os aviões de pequeno porte. Corrigiu imediatamente o rumo alternando para a rota direta para o destino. Ao voar mais meia hora notou que também por ali havia CBs. Aproou ainda mais para a direita, teria que contornar essas formações meteorológicas.
                               Agora, em virtude dessas alterações imprevistas se impunham duas preocupações, decorrentes do aumento do tempo de voo: chegaria a Alta Floresta, seu destino, com combustível escasso porque ao abastecer, pouco antes de partir para o socorro, calculou a quantidade de combustível suficiente para a ida e o retorno mais trinta minutos de voo. Se estivesse com combustível excessivo não conseguiria decolar da aldeia. O outro problema era relacionado com o pôr do sol, com o acréscimo do tempo de voo chegariam à noite no destino. Mas, quanto a isso, faria de novo o que já fizera várias vezes: pousaria no escuro mesmo. Pensou bem e resolveu encarar um dos CBs para encurtar a rota. Quando, mais uma vez alterou a proa, o piloto resgatado voltou a esbravejar dizendo que iria soltar as asas se insistisse em atravessar a tempestade. O Rani apenas bateu com o dedo indicador nos marcadores de combustível, O gringo ficou quieto.
                             Fluxos de vento deslocando em turbilhonamento massas de ar de volume incalculável, começaram por jogar o 185 para cima, por mais que o Rani comprimisse o manche para o avião descer ele subia incontrolavelmente. Em instantes se dava o inverso, de repente despencava com velocidades por vezes baixas demais, em outras ocasiões excessivamente altas. Já não havia mais visibilidade, era tudo cinza escuro, quase preto lá fora. O sacolejar era violentíssimo, ouvia-se estalos na estrutura de alumínio do avião por todos os lados, principalmente vindos das asas. Foram uns vinte minutos dessa agonia até que o CB fosse vencido. O autor do ditado: depois da tempestade vem a bonança, deve ter passado por isso. Agora voavam com a maciez de um sonho feliz. Mas nem tudo estava resolvido. Anoitecia e o CB os havia levado para onde?
                                   
Rio Apiacás 
Ao saírem da tempestade, imediatamente, o Rani lançou olhares para todos os lados e, apesar do lusco - fusco, ainda conseguiu identificar o rio Apiacás, um pequeno trecho dele. Era uma referência singela, pois não tinha como deduzir em que altura do rio teria cruzado. Manteve a rota por uns cinco minutos e foi perdendo altitude para tentar, quando mais próximo do solo, encontrar  alguma referência adicional; não foi possível, escureceu rapidamente. Acendeu as luzes do painel do avião e passou a voar apenas por instrumentos. Dessa forma, voando sem qualquer visibilidade externa, restava-lhe apenas a alternativa de conseguir sintonizar a rádio FM de Alta Floresta, através da qual o ADF no avião apontaria a direção da emissora e consequentemente da cidade, Resolveu, improvisando, voar em serpentina, ia alterando a rota, para lá e para cá, como se seguisse uma serpentina gigante desenhada no seu imaginário, com isso teria mais chances de evitar passar ao lado da cidade sem receber o sinal da rádio FM. A emissora local era de baixa potência e os sinais só surgiam quando  bem próximo estivesse. O piloto gringo já não entendia mais nada, agora foi a vez dele de mostrar com o indicador os marcadores dos tanques de combustível que entravam no vermelho, acusando a emergência. O Rani, por sua vez, bateu com o indicador no aparelho do ADF. O gringo continuou a não entender nada. Mas ficou quieto, depois daquele dia voando com o Rani, se saíssem vivos, nunca mais pilotaria. Conversava vez ou outra com o outro passageiro. Ficava à vontade para, em inglês, falar um monte de descalabros a respeito daquele que os conduzia.
                           A situação estava ficando dramática, mais ainda a cada minuto, Nisso surge um chiado no rádio. Os gringos se aproximaram rapidamente dos alto falantes. O Rani fez uma curva brusca para a esquerda e o chiado foi desaparecendo, imediatamente fez outra para a direita e o chiado foi aumentando, manteve a proa na direção da maior intensidade dos chiados. Sem demora surge uma cantoria, parecia algo sacro. Mais um pouco e se pode perceber que era uma Ave Maria cantada por um coral, o ponteiro do ADF se movimentou e indicou a localização da rádio, que transmitia uma missa local. Estavam mais de dez graus fora da rota. Corrigido o rumo logo avistaram as luzes da cidade. O Rani não teve dificuldades em pousar na pista sem balizamento naquela noite escura.
                           Ao descerem do avião os gringos gritavam de alegria, histéricos diziam: Uma Ave-Maria nos salvou.
                           Cessada a comemoração quase histérica, como se nada tivesse acontecido, manifestou-se o Rani, num inglês tão fluente quanto o dos gringos: the eletromagnetic waves that trigger the marker of ADF doesn’t submit to religious influence. We had a same appointment with the dail playing a “pagode sound.”
                          Ou seja: “ as ondas eletromagnéticas que acionam o marcador do ADF são laicas, não sofrem influência religiosa, Teríamos obtido a mesma indicação da emissora se estivesse tocando um pagode.”
                       
Paulo Tadeu Poli
Virou as costas para os resgatados que foram recebidos por inúmeros mórmons que os aguardavam, pegou o seu carro e foi para casa. 
                        Para ele foi apenas mais um dia.
                     
                                    

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