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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

UM LIVRO MÍSTICO OU MÍTICO? - João Carlos Taveira

UM LIVRO MÍSTICO OU MÍTICO?*



João Carlos Taveira



PoloBooks - São Paulo - 2016
As Lâminas do Tarô e os Doze Trabalhos de Hércules, na verdade, constitui um desafio para o leitor apressado, que não só precisa desvendar o livro antes de qualquer entrega, como também compreendê-lo amorosamente na sua compactação estilística, mesmo depois de ter percorrido cada página, cada poema, cada palavra. A forma fixa às vezes assusta, pois no mundo de hoje a arte poética tornou-se mais fácil de ser absorvida quando se apresenta sem técnica, sem preocupação formal, sem compromisso estético.

Adotando os 21 trunfos do tarô, mais o curinga, Solidade Lima constrói um mosaico de filigranas, composto como se fora um tapete finamente tecido de sons e de palavras. E numa visitação ao universo medievo, por intermédio de uma reinvenção simbólica, o poeta traz intactas as vicissitudes de um mundo moderno e arcaico ao mesmo tempo. A poesia, e só a poesia, tem esse poder revolucionário dentro da linguagem escrita. Metaforicamente, lembra-me das ousadias de Augusto dos Anjos.

Embora jovem, Solidade Lima, depois de uma série de livros escritos e de vários prêmios arrebatados pelo país afora, já é autor maduro e consolidado: conhece bem a língua de comunicação e as armadilhas provindas da escrita; e, aqui nesta seara, sabe safar-se com destreza e perspicácia de possíveis perigos gramaticais, na construção de seu discurso poético. Escolheu o soneto, invenção italiana do século XIII, para expressão do desatino verbal e encontrou nas cartas do tarô e na mitologia os arquétipos do seu espanto. Um visionário moderno em busca do velocino de ouro. Mas talento não lhe falta.

O soneto — do italiano sonetto, pequena canção ou, literalmente, pequeno som — foi criado na primeira metade do século XIII, na Sicília, onde era cantado na corte de Frederico II da mesma forma que as tradicionais baladas provençais. Alguns estudiosos atribuem a invenção do soneto a Jacopo da Lentini, poeta imperial siciliano. Esse tipo de poema surgiu como uma espécie de canção ou de letra escrita para música, e possuía, inicialmente, uma oitava e dois tercetos, com melodias diferentes.
Algum tempo depois, o soneto evoluiu até atingir sua forma fixa hoje conhecida, ou seja, um poema composto de quatorze versos, sendo dois quartetos e dois tercetos, com rimas ou não. Há, ainda, os que invertem a disposição estrófica e os que buscam a tradição do soneto inglês (três quartetos e um dístico), praticado no século XVI por William Shakespeare, e aqueles que cultuam o soneto monostrófico, que apresenta uma única estrofe de quatorze versos. Há, também, alguns poetas que o praticam em metros menores e até sem metro algum. O certo é que há, entre nós, exímios (es)cultores de versos decassilábicos e alexandrinos, conforme a tradição italiana e ibero-americana.

Os modernistas de 1922 — que isso fique bem claro! — se insurgiram contra o soneto por uma questão muito simples: eles precisavam parecer modernos muito mais do que ser modernos; e, para isso, era preciso quebrar e pisotear algumas regras, principalmente as da ortografia e as da gramática, atacar as formas fixas tradicionais e esculhambar de vez com o pensamento canônico brasileiro. E esse, a meu ver, foi o grande desserviço da Semana de Arte Moderna para as futuras gerações de poetas e artistas visuais, que levaram ao pé da letra todo aquele descompromisso com as tradições e com as normas vigentes. Hoje, pinta-se um quadro sem saber desenho, perspectiva, etc.; escreve-se um poema sem ter lido poesia, sem saber versificação e sem respeitar as normas cultas da Língua.

O presente volume está subdividido em três partes: “As lâminas do Tarô”, que apresenta 22 peças referenciais; “Os doze trabalhos de Hércules”, com poema para cada um deles, e “Sonetos”, que soma mais 54 unidades, perfazendo um total de 88 sonetos voltados para os temas propostos e que encontram na voz do poeta pernambucano radicado na Bahia a erudição precisa e o domínio técnico seguro para elevação de uma elegância sintática a serviço da estética e da beleza. Solidade escreve como quem compõe melodias. E a musicalidade de seus poemas deve-se, sobretudo, aos versos decassilábicos heroicos e, mais raramente, aos sáficos, mas ambos construídos com a mesma devoção artesanal e o mesmo cuidado de um ourives na confecção de uma joia rara.

Com este novo livro, o autor de As Vestes do Tempo se inscreve, sem nenhum favor, no restrito círculo de ouro da moderna literatura brasileira. E que venham a lume outros títulos, já que a maioria de sua obra ainda permanece inédita. Mas por pouco tempo — é o que os leitores de Solidade Lima esperamos, sem reservas e pra já.


Brasília, 22 de fevereiro de 2016.


João Carlos Taveira
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* Texto de introdução ao livro As Lâminas do Tarô e os Doze Trabalhos de Hércules, Editora PoloBooks , São Paulo, de 2016.

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